domingo, 23 de dezembro de 2007


B
OAS FESTAS!


segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Âmago


Cansada da periferia do universo e do mundo. O caminho do lado de fora parece não ter fim, sentido ou direcção... Procura-se o caminho para o centro e não se acha. As vias entrecruzam-se solenemente. Então, uma porta, uma janela entreaberta dá para o âmago. É preciso contorná-lo.
O ar inóspito não convida, mas está lá o cerne de tudo. Procurar... procurar... a vida indomável. Quando desponta por magia. Num vermelho que derrete o gelo.



Ir até um qualquer lugar mítico pode ser impossível. Já não temos tempo para procurar entre florestas tristes os sinais de vida. Lugares longínquos e inacessíveis, são isso agora.
Na impossibilidade da viagem, só me resta inventar a minha própria flor...

E o certo é que a voz da Sade aquece qualquer Inverno! Está-lhe no âmago.
Sim, é verdade, gosto da música. Sobretudo porque está frio. E as flores raro despontam em lugares absolutamente gelados. Muito menos, os frutos.

"Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exactos

Basta para podermos

Achar a vida leve."

Ricardo Reis

domingo, 9 de dezembro de 2007

O mundo...


Às vezes, nada se diz. Nada se mostra. O que se pensa. O que se sente. É quando tudo nasce em silêncio. A palavra sente-se vã. A imagem também. Da sua nulidade colhe-se o seu peso com gravidade.
Às vezes, diz-se. Às vezes, mostra-se. O que se pensa. O que se sente. É quando tudo se faz palavra. Imagem. Som. Tentativa de sentido. A ilusão da revelação tem força. Desta força colhe-se desejo de transformar. Ao dizer, ao mostrar... o que se pensa, o que se sente.

Hoje, eu sinto: mesmo que diga o que penso, o que sinto... O mundo não vai mudar.
Mesmo assim, às vezes, digo. Mostro. Pela atracção do abismo....... que é a palavra pela qual se diz. Pelo instante da imagem... que é a força da síntese com que se mostra. Pelo chamamento da sonoridade... que é a música, pormenor da sensibilidade.
Não creio mudar o mundo.
Creio apenas estar no mundo.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Drama chic



Fui ver este filme sem qualquer referência prévia. Não sabia quase nada sobre ele, a não ser o título português (de que não gosto, acho preferível Crepúsculo em vez de Ao Anoitecer).
Às vezes, acontece ir ao cinema assim. Sem informação antecipada.
Deparei-me com um elenco repleto de nomes sonantes do cinema e com o nome de Michael Cunningham no argumento. Escritor que tenho em grande conta.
Pode ler-se um pouco mais sobre os detalhes do filme e respectiva sinopse aqui
ou aqui
Pelo que pude averiguar, o filme é classificado por muitos com a categoria de "drama chic". Embora me pareça uma designação algo pejorativa, acho que lhe assenta muito bem. É um drama e todo ele chic. Entre outras razões, porque se passa no ambiente da alta sociedade norte-americana, neste caso, de Newport. Por outro lado, ainda antes da referência feita no filme ao "Grande Gatsby" de F.S. Fitzgerald, já o ambiente me tinha recordado um pouco essa atmosfera de decadência e conflitos mal-resolvidos, onde a riqueza, o poder e os excessos são uma constante.
Até aqui, tudo bem. Mas concordo com a designação de drama chic por outros motivos mais fortes, quanto a mim. Embora o drama seja real e se aplique a qualquer um de nós, se o quisermos... As variações podem ser infinitas, o esquema é o da vida humana... perene... Apesar de tudo isso, o certo é que é um drama carregado de beleza "perfeita", de beleza elitista. A crueza da realidade que se enfrenta não condiz com a sufocante perfeição idílica dos cenários.
Drama chic ou não, foi isso que não gostei no filme. O contraste altamente pessimista entre o idílio de um passado romântico de maravilhas dignas de "pacotes de viagens a lugares de sonho" e o terminus da vida, num quarto, numa cama que é conotada com o fim e com uma prisão física, um lugar onde o sol mal chega a entrar... Todo o filme decorre neste alternar de ambientes carregados de mensagens subliminares. Uma visão pessimista que gera um filme pessimista. E melodramático. Induz as lágrimas sentidas, mas conscientes de que houve muito de manipulação nesse efeito secundário. Uma mistura de "Grande Gatsby" e de romance tipo Nicholas Spark ("O Diário da Nossa Paixão", por ex.), se é que é permitido misturar dois produtos de qualidades tão distintas.

No entanto, existem aspectos positivos e para isso talvez contribua o toque Michael Cunningham. Algumas das grandes questões humanas que não podem deixar de tocar mesmo o mais empedernido dos corações. A retrospectiva de uma vida e o peso existencial da mesma... O ciclo de um percurso que se cumpre da juventude até à morte, onde os erros não são erros mas opções com consequências... O desejo de voltar atrás e reviver, refazendo tudo outra vez de outra forma... A sempre complexa relação entre pais e filhos (aqui, entre mãe e filhas)... A tristeza pelo que não se viveu e a paz na aceitação do que se escolheu... Tudo muito denso, profundo, sério, filosófico e bastante doloroso de enfrentar. Muito de acordo com o magnífico estilo de Michael Cunningham que também consegue sempre revelar o conhecimento minucioso das nuances da "alma" feminina.
A minha cena preferida (há muitas boas que podem ser vistas por aqueles que optarem por ver o filme e que foram vistas por aqueles que já o visionaram) é a do fim do filme. Infelizmente, não encontrei a respectiva imagem.
Não pude deixar de pensar numa determinada concepção de alma, algo pessimista (o que vai bem com o clima criado) e que está presente em várias cenas, especialmente na do desfecho. A da alma-sopro. Uma ideia de alma que remonta a Homero e que na última cena perpassa a mensagem final, ao deixar entrar uma brisa forte pelas janelas do quarto, agitando as cortinas brancas, no momento da morte de Ann... Não inovadora, mas bem feita. E sempre uma recriação interessante.
Nesse exacto momento, tornou-se-me presente a passagem do Fédon de Platão, quando Cebes, dirigindo-se a Sócrates, diz:
"(...) quanto, porém, se refere à alma, é objecto de grande incredulidade para os homens, que suspeitam não existir em parte alguma, depois de se separar do corpo, e que, no dia da morte, é destruída e perece com ele. Apenas se separa e sai do corpo, imaginam, esvai-se como hálito ou fumo e, esvaída deste modo, não existe em nenhum lugar."

Um outro aspecto interessante (e forte) do filme é o de possuir muitos actores dignos de nota. Nomes mais do que afirmados. E outros que prometem. Gostei muito da Claire Danes e não pude deixar de encontrar o estilo Paul Newman em Patrick Wilson. Mas é de assinalar a filha de Meryl Streep (a qual ainda não conhecia). As semelhanças são evidentes e quanto ao talento no representar também se fazem notar. Achei-a logo especial, antes de verificar que se tratava da filha de uma das actrizes de cinema que mais admiro. Um clone natural que mostra ter personalidade própria. Mais uma vez, a relação mãe-filha(s) que está sempre subjacente neste filme.

Tal mãe...tal filha... !

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Leonardo


Ultimamente, um certo acaso conduziu-me ao retomar da leitura de um texto lido há uns bons anos atrás. É verdade, há livros que vale a pena reler, sobretudo por serem lidos em épocas diferentes da nossa vida. Acontece sempre o impacto da leitura anterior ser reconvertido noutras formas de impacto. E, sobretudo, são outros os detalhes aos quais se dá toda a atenção. Se, noutros tempos, esta leitura pareceu algo fastidiosa (talvez pelo carácter de imposição de que se revestia); agora, ela surgiu-me como muito mais interessante. E trouxe até mim toda a singela humanidade desse extraordinário e enigmático ser (pintor mas não só...) que foi Leonardo da Vinci.

Sobre a infância de Leonardo, diz-nos Freud:

"Sabemos muito pouco sobre a juventude de Leonardo. Nasceu em 1452 na pequena cidade de Vinci, entre Florença e Empoli; era filho natural, o que naquela época não era socialmente considerado como uma mácula importante; o seu pai era Ser Piero da Vinci, notário e descendente de uma família de agricultores que tomaram o seu apelido da localidade de Vinci; a mãe chamava-se Caterina e era provavelmente camponesa, tendo casado mais tarde com outro habitante de Vinci. Esta mãe não reaparece na vida de Leonardo; apenas o escritor Mereschkowski crê poder reencontrar os seus vestígios. A única informação segura sobre a infância de Leonardo é dada por um documento oficial do ano de 1457, um registo de impostos florentino, no qual está incluído Leonardo, entre os membros da família Vinci, como filho ilegítimo de Ser Piero, com a idade de cinco anos. Do seu casamento com Donna Albiera, Ser Piero não teve filhos e por isso o pequeno Leonardo pôde ser educado na casa paterna. Só a deixaria quando entrou como aprendiz - desconhece-se com que idade - para o atelier de Andrea del Verrocchio. No ano de 1472 o nome de Leonardo encontra-se já na lista dos membros da Compagnia dei Pittori. É tudo."
Sabemos, portanto, pouco.

Os seus contemporâneos teciam-lhe diversas críticas, relativas ao seu trabalho como pintor. Sobre Leonardo, enquanto pintor e homem de ciência, diz-nos também Freud:
"Embora nos tenha legado obras-primas da pintura, enquanto as suas descobertas científicas permaneceram inéditas e inexploradas, nunca nele o investigador deu plena liberdade à carreira do artista; muitas vezes a prejudicou seriamente e talvez tenha acabado por abafá-la.
(...)

Que ocultava, pois, a personalidade de Leonardo à compreensão dos seus contemporâneos? (...) Nos tempos da Renascença era habitual a reunião num só indivíduo de múltiplas capacidades; o próprio Leonardo era, de facto, um dos exemplos mais brilhantes dessa época.
(...)

É bem possível que este retrato de um Leonardo radioso, alegre e apreciador dos prazeres não corresponda senão a um primeiro e mais longo período da vida do mestre. A partir daí, quando a decadência do poderio de Lodovico Moro o obrigou a deixar Milão, a sua esfera de actividade e a sua posição segura, e a levar uma existência agitada e sem brilho até ao seu último asilo em França, o humor de Leonardo pode ter-se tornado mais sombrio e alguns aspectos estranhos do seu carácter terem-se acentuado. A deslocação dos seus interesses, que com os anos se foram paulatinamente transferindo da sua arte para a ciência, também deve ter contribuído para alargar o fosso entre si e os seus contemporâneos."

Esta faceta de múltiplos interesses, por parte de Leonardo da Vinci, é o que me parece inegavelmente interessante e mesmo atraente na sua personalidade. O que não deixou de lhe trazer, certamente, inúmeros inconvenientes. Mas, na verdade, Leonardo foi muito mais do que um pintor, foi um homem muito especial, com uma personalidade enigmática e um génio prodigioso. Talvez perdido entre tantos aspectos que alimentavam intensamente o seu infinito desejo de conhecimento. O que Freud interpreta como resultante de um mecanismo de sublimação. Sublimação ou não, valeu a pena ter existido. Talvez a sublimação, tal como Freud a entendia, seja positiva e, sem dúvida, produtiva.
Esta personalidade fascinante, revelada em todos os seus trabalhos, está muito para além do ícone que funcionou como elemento aglutinador no romance de Dan Brown, "O Código da Vinci".

"Todas as experiências com que, (...), perdia tempo em vez de pintar assiduamente por encomenda e enriquecer como Perugino, seu ex-condiscípulo, pareciam-lhes (aos seus contemporâneos) caprichosas brincadeiras ou tornavam-no mesmo suspeito de se dedicar à «magia negra». (...) Quando dissecava cadáveres de cavalos e de seres humanos, construía máquinas voadoras, estudava a nutrição das plantas e a sua reacção aos venenos, afastava-se bastante dos comentadores de Aristóteles e aproximava-se dos desprezados alquimistas, em cujos laboratórios a investigação experimental tinha pelo menos encontrado um refúgio durante esses tempos adversos.
Para a sua pintura isto teve como consequência que Leonardo perdesse o gosto pelo uso do pincel, pintasse cada vez menos, deixasse muitas obras inacabadas e pouco se interessasse pelo seu destino. Era também isto que os seus contemporâneos lhe criticavam, pois a sua atitude perante a arte continuava a ser para eles um enigma.

Admiradores ulteriores de Leonardo tentaram apagar do seu carácter a mancha da inconstância, alegando que o que se lhe censura é próprio dos grandes artistas. (...) A penosa luta com a obra, a fuga final perante a sua realização e a indiferença pelo seu destino ulterior podem encontrar-se em muitos outros artistas; mas sem dúvida que Leonardo apresentava este comportamento ao mais alto grau."
Excertos de :
"Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci", S. Freud


A leitura deste texto de Freud é interessante. Muito bem escrito, como foi sempre característico do seu autor, refere vários factos sobre Leonardo, mas perspectivados de um ponto de vista que é tudo menos superficial.
Evidentemente, todo o texto reflecte o esquema da interpretação psicanalítica. Hoje, este esquema pode ser considerado algo limitador, mas continua a ser referência para a criação de novas perspectivas acerca dos labirintos da mente e da vida humanas.
Neste caso, a interpretação profunda do perfil psicológico de alguém como Leonardo da Vinci mostra-nos, antes de mais, a sua humanidade repleta de contradições, de medos, de dúvidas, de inconstâncias e de arrependimentos. Não um ser perfeito, mas um ser com defeitos, fraquezas e recalcamentos. Se sublimou tudo isso, soube fazê-lo com resultados magníficos!
Sinceramente... considerando a nossa época actual... e usando linguagem psicanalítica:
Às vezes, um bocadinho de sublimação não faz mal nenhum. Pelo contrário!



(Imagens: Desenhos de Leonardo da Vinci obtidos em pesquisa do Google)

domingo, 18 de novembro de 2007

Disneylândia de Diane Airbus


Diane Airbus (1923-1971). Esta fotógrafa despertou o meu maior interesse, como já uma vez aqui referi.
A consciencialização que realizei acerca do seu trabalho resultou de ter visto o filme "Fur - An Imaginary Portrait of Diane Airbus" (realizado por Steven Shainberg, EUA, 2006).
O filme é baseado no livro "Diane Airbus: A Biography" (2005) de Patricia Bosworth. O acesso à vida e ao trabalho da fotógrafa foi estritamente controlado pela sua filha Doon, a partir de 1971, data em que a artista se suicidou. Só recentemente, Doon permitiu que fosse trazida a público, quer a vida, quer a obra da mãe. Em relação ao filme, ele motivou alguns protestos por parte da família, na medida em que o terão considerado não respeitador de alguns factos reais e importantes na vida de Diane Airbus.

Como o próprio título do filme indica, trata-se de uma visão imaginada. Por isso, abre apenas uma espécie de "janela imaginária", a partir da qual é possível captar a dimensão única do seu trabalho. O que pode ser muito...
Neste aspecto de possibilitar a abertura a um certo universo particular, o filme pareceu-me inegavelmente bom de tão revelador: o conflito latente de uma mulher, Diane, dividida entre a exigência e o desejo de perfeição, assim como de adequação absoluta aos ideais da sociedade norte-americana daquela época, e a necessidade de realização artística, face à energia criativa que a dominava cada vez mais. Pelo filme, é possível pressentir o conflito que nos vai invadindo de um modo algo silencioso e, por isso mesmo, muito subtil.


Na verdade, não considerei o filme uma obra maior. De assinalar, apesar disso, além do que já referi de positivo, a excelente interpretação de Nicole Kidman (a de Robert Downey Jr. não lhe é inferior) e, por outro lado, a forma como consegue recriar a densidade dramática da personalidade da fotógrafa, assim como a da sua própria vida, mostrando as peculiaridades da sua visão artística. Tem, portanto, o mérito de divulgar alguns aspectos do seu trabalho, ao mesmo tempo que consegue cativar para a originalidade do seu "um outro olhar". Que me pareceu tão intenso quanto inovador. De intervenção e de uma certa "fascinação". Na verdade, não o vou esquecer. Está registado fortemente nos arquivos da minha memória.
Por todos estes motivos, posso afirmar que gostei do filme.

Entre outros aspectos interessantes do trabalho de Diane Airbus, o que mais retenho é essa capacidade de recriação da realidade, introduzindo nela uma atmosfera de "diferença" perante a banalidade do real. Ao mesmo tempo que não deixa de revelar esse mesmo real com grande intensidade e lucidez. Por vezes, a realidade nua e crua mas tornada "especial".
Esta pequena divagação, acerca da minha admiração pelas fotografias desta artista, é uma igualmente pequena homenagem ao seu grande talento e criatividade.
Além da alusão ao filme, aqui fica também a Disneylândia vista com o seu "olhar" e a sua máquina fotográfica. Uma das minhas preferidas, entre as que encontrei...


(Imagens: Disneylândia de Diane Airbus e resultados de pesquisa no Google)

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Literatura


Desde sempre ouvi falar de Norman Mailer, mas foi há uns poucos anos que lhe dei a devida atenção. Resultou de um documentário a que casualmente assisti num canal de televisão. Não me lembro já qual. Mas nunca mais esqueci Norman Mailer e o quanto me impressionou, a partir de então, a sua força humana que fazia adivinhar igual poder literário. Foi assim que decidi ler "Os Nus e os Mortos", de tal forma me interessou confirmar a qualidade da construção literária de um universo feroz e atrozmente realista (será?), sem dúvida psicologicamente profundo, como é aquele que descreve nesse romance. O cenário é de guerra e o drama o da redução brutal da existência humana a puras relações de poder. Num universo sem sentido, o mal encontra a sua mais plena manifestação.
É importante ler este autor. Um escritor que se pautou sempre por uma grande radicalidade crítica na análise do ser humano e da sociedade, em particular da norte-americana.


Morreu Norman Mailer. A sua carreira literária e a sua vida estão repletas de polémicas. Concorde-se com ele ou não, olhe-se o mundo pela sua óptica ou não, é um escritor que alcançou uma dimensão universal. Impossível será negar a sua brilhante inteligência e, mais ainda, a sua esmagadora acutilância.

Vale a pena ler mais sobre Mailer e a sua obra aqui



(Imagens: resultado de pesquisa no Google)

domingo, 11 de novembro de 2007

Filosofia: "interpretar"


«Conceptualmente, podemos chamar verdade àquilo que não podemos mudar; metaforicamente, ela é o solo em que nos movemos e o céu que se expande por cima de nós.»
Hannah Arendt, Verdade e Política

A filosofia é aquele lugar único e maravilhoso, onde é possível pensar, questionar, problematizar e rever o mundo com um "olhar" que se insinua "por detrás" do próprio mundo.

Perante o que nos rodeia projectamos sempre um determinado "olhar"... Esse "olhar" é sempre uma interpretação. Daí as aspas.
Ora, interpretar coloca sempre problemas. Porque nada é o que é, como o "vemos" e ponto final. Basta querer "ver" de novo e há sempre mais qualquer coisa...a acrescentar ou, no mínimo, a reformular.
A interpretação - cada vez mais disso me convenço - sofre tremendos efeitos relacionados com o ponto de vista do observador. O autor desse tal "olhar". Sem querer cair num qualquer relativismo, dir-se-ia que nunca há um só "olhar" que seja o único válido. Porque toda a interpretação acontece num contexto x, y ou z...
Parece que a objectividade é uma mera quimera. E que nunca ninguém poderá entender-se completa e absolutamente com um "outro". Ou será, mesmo assim, ainda possível?
Talvez exista uma saída para o impasse. Perante muitos possíveis "olhares", perante múltiplas interpretações, na medida em que se encontrem pela necessidade de interacção continuada, não há outra hipótese: é preciso definir e estabelecer regras para interpretar. Esclarecer o contexto da interpretação é a via para a definição dos princípios subjacentes a essa interpretação e das regras que ela deve respeitar.

Kant resolveu a questão pela noção de sujeito transcendental, salvando assim a possibilidade da objectividade científica. Afirmou também a evidência de uma lei moral em nós. E ainda apelou à existência de uma possível intersubjectividade. Precisamente no que se refere a questões das mais susceptíveis quanto a "interpretações": as questões relacionadas com a nossa faculdade de julgar. Questões de gosto e de apreciação estética, por exemplo. Deste acordo intersubjectivo depende, no limite, a possibilidade da existência de progresso numa vida em comunidade da humanidade. O encontro do "eu" com os "outros". Outros "eus"... Neste caso, o contexto é universal e a solução tem um carácter formal.

Vamos todos interpretar da mesma forma? Ou o que acontece é criarmos uma permanente reinterpretação do mundo (concreto), a partir da contribuição de múltiplas e, na verdade, infinitas interpretações individuais e subjectivas porque vividas?
Até que ponto o nosso "olhar" é efectivamente individual? Provavelmente, há um pouco de nós em cada "visão" do mundo do "outro", sendo o inverso igualmente válido. Mas se cada um de nós se eclipsar enquanto pólo de interpretação do mundo, toda a "visão" desse mesmo mundo corre o risco de se tornar um vazio.

Toda a interpretação tem uma força única. Talvez o mundo não avance sem tal. Interpretar pode ser, por isso, vitalmente importante. Por paradoxal que pareça, interpretar tem tanto de força como de fragilidade. Uma interpretação de alguma coisa, de um facto, de um acontecimento, de um livro, de um filme, etc... é sempre só e apenas uma interpretação. Indispensável, inevitável, legítima e frágil na sua visão isolada.
Apelar a regras de interpretação, a normas e a princípios pode parecer limitador. No entanto, talvez só por essa via possa desenvolver-se uma interpretação consequente. É que só assim é possível comunicá-la. E poderemos viver sem tal dimensão? Poderemos alterar a nossa natureza de seres sociais? Não é ela constitutiva do nosso "eu" mais íntimo? Como concretizar qualquer acto comunicacional sem averiguar das condições necessárias e a todos exigidas para a sua efectiva realização? Fingir comunicação não é suficiente. E a verdadeira intercomunicabilidade tem regras. Tal como toda a interpretação e todo o discurso. Podemos lamentar(?), mas as "pontes" só se constroem com convenções. A própria sociedade é convencional. Os próprios actos anti-convencionais são resultado de convenções e, por isso mesmo, convenções também. Qualquer suposto projecto (ou anti-projecto) designadamente anárquico, nada mais é do que a redução da esfera de aplicação de outras convenções a universos micro-sociais. O que há é apenas um outro contexto e suas regras específicas.
Interpretar dentro de um contexto, nortear a interpretação de acordo com as regras definidas, nada disto lhe retira a liberdade de acontecer, antes lhe confere o direito de crescer e ser real.

A nossa interpretação é frágil. Está sempre suspensa sobre o mundo e sobre nós próprios, à espera de ser contrariada. Na sua fragilidade reside a sua força. Ela nasce do seu enérgico estatuto de direito à intervenção, pessoal e intransmissível-transmissível, no processo de Interpretação.
É preciso interpretar e fazê-lo com o nosso próprio "olhar".

(Imagem: Interpretationen de Zademack)

domingo, 4 de novembro de 2007

Ciro, o Grande


"Bem-vindo, peregrino, tenho estado à tua espera.
Perante ti jaz Ciro, Rei da Ásia, Rei do Mundo.
Tudo o que resta de mim é pó.
Não me invejes."
Inscrição no túmulo de Ciro, o Grande, em Pasárgadas

Nunca fui muito organizada nas minhas leituras, é verdade. A não ser por necessidade profissional, onde imponho a regra e a ordem, nas leituras paralelas de alguns tempos livres, gosto de seleccionar bastante ao acaso o que leio. Ao sabor do momento. E misturo sempre muitas leituras.
Ultimamente, e por diversas razões, oiço falar muito do Irão. Subitamente, concluí conhecer muito pouco deste país e da sua cultura. O Irão é a antiga Pérsia. Detentor(a) de uma cultura milenar e riquíssima. Portanto, "impunha-se", no mínimo, uma pequena leitura. Pelo menos, foi isso que me ditou o momento.

De facto, nestes últimos tempos, não tenho lido muito. Pelo menos, não tanto como é meu hábito. Acho que quanto a isto também não devem existir verdadeiras imposições. A leitura deve ser sempre o prazer de a querer fazer. E é por ser um dos meus maiores prazeres que nunca a abandono, por pouco tempo de que disponha ou mesmo quando atravesso uma fase mais contemplativa e reflexiva.

Posto isto, a minha leitura mais recente foi um livrinho sobre o Irão. Daqueles que nos dão um panorama rápido mas muito bem "construído". Vários factos interessantes chamaram a minha atenção. Mas foi a personagem de Ciro, o Grande (560-530 a.c.), que imediatamente me cativou. Desde logo, a inscrição no seu túmulo e que acima transcrevi. Parece-me admirável, profunda e grandiosa. Ferozmente carismática. Simultaneamente humilde. Uma personagem do passado, entre outras, que faz pensar. Por isso, aqui fica a nota. E mais alguma informação sobre...

"Ciro II foi rei do povo persa aqueménida que daria pouco depois o nome à primeira dinastia, a Aqueménida. (...) Ciro construiu uma enorme máquina militar admiravelmente disciplinada.
(...)
Ciro não foi só um líder militar brilhante; foi também um dos reis mais notáveis da História Antiga. Numa época em que a realeza parecia largamente definida pelo uso da força, Ciro destaca-se como um líder esclarecido, tolerante e sábio."

"Ciro tem uma aura incomparável de justiça e sabedoria no mundo antigo. Mesmo que só metade do que é dito a seu respeito seja verdade, então ele deu um exemplo de liderança esclarecida, rara até nos dias de hoje. O historiador grego Xenofonte escreveu um livro sobre Ciro chamado Ciropédia, que Alexandre, o Grande, terá tido à sua cabeceira, juntamente com a Ilíada de Homero e um punhal.
De acordo com o historiador romano Heródoto, Ciro prometeu: «respeitar as tradições, costumes e religiões das nações do meu império e nunca deixarei nenhum dos meus governadores e subordinados desprezá-las ou insultá-las(...). Não imporei a monarquia em nação alguma. Cada uma é livre de aceitá-la, e se alguma delas a rejeitar, determino que nunca reinarei pelo uso da guerra.»
Parte do seu sucesso militar foi devido ao facto de ter sido visto pelos povos invadidos mais como um libertador do que um conquistador. A conquista de Babilónia em 539 a.c. foi um caso típico. Quando Ciro chegou a Babilónia foi recebido com flores. Na Bíblia, aparece aclamado como o Messias que iria finalmente libertar o povo judeu do cativeiro dos reis Babilónios."

Ciro, o Grande (imperador persa)

"Para assegurar que o povo da Babilónia foi bem tratado, ele deixou estas palavras famosas inscritas numa pedra: «Eu sou Ciro, Rei da Babilónia, Rei da Suméria, Rei da Acádia, Rei de quatro países(...). O meu grandioso exército entrou pacificamente em Babilónia e não deixei que nenhum mal chegasse à terra da Babilónia e ao seu povo. Os modos respeitosos dos babilónios ensinaram-me (...) e eu ordenei que todos devem ser livres de adorar o seu deus sem prejuízo algum. Ordenei que nenhum lar fosse destruído e que nenhuma propriedade fosse tomada.»
Esta pedra, chamada Cilindro de Ciro, foi descoberta na Babilónia em 1879 e é agora largamente reconhecida como a primeira carta régia dos direitos humanos do mundo. Em 1971, as Nações Unidas traduziram-na para todas as suas línguas oficiais e colocaram essas traduções num lugar de destaque no edifício das Nações Unidas em Nova Iorque."

"Quando a defensora dos direitos humanos iraniana, Shirin Ebadi, recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2003, declarou: «Sou uma iraniana descendente de Ciro, o Grande, o mesmo imperador que há 2500 anos proclamou do mais alto do seu poder "... que não reinaria se o povo não o desejasse", e que prometeu não obrigar ninguém a mudar a sua religião e a sua fé e garantiu a liberdade para todos.»"
excertos de O Irão, John Farndon

Pareceu-me igualmente importante, por outras razões, considerar o conceito de farr, o qual pode traduzir-se por carisma. A sua origem está ligada à figura de Zoroastro, a qual exerceu uma influência poderosa no nascimento da Pérsia. Na verdade, acabou por influenciar todo o mundo ocidental. E influencia, também e sobretudo, a forma como os iranianos vêem os seus líderes actualmente.
De acordo com Zoroastro, a noção de farr implica que um governante, como qualquer outro homem, possa prescindir da orientação divina, se assim entender. Mas, se o fizer, perde o farr, ou seja, o divino auxílio que lhe confere o direito de governar.
Um conceito cuja justificação está longe de ser consensual, certamente... Mas fundamental para compreender o Irão actual.

(Imagens: resultados de pesquisa no Google)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Nonsense

Ou do absurdo que há em mim...

Céu riscado
Tempestade

Mais de 40
Sem protecção
Chega a hora
Agora só de impermeável

Está estragado e remendado
Mas impede calafrios
Repele dilúvios
E o grau gélido
Do ser

Mantém temperaturas-ambiente
Retém fragilidades
Impede absorção de horrores
Vindos dos circos, das feiras, dos palcos
Das montras nas ruas chiques
Onde debatem relâmpagos
Onde ribombam trovões
Onde ser must é um tique

O espectador indomável
Tem um impermeável
Maleável
E comprado
Um tudo nada estragado

Oh, My God!
Nunca percebeu nada de impermeáveis!
Acorde!

(Imagem: Trench Coat sous orage de Jean-Claude Clayes)

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Livros


Vale sempre a pena conhecer melhor a História. Vale sempre a pena conhecer melhor a História de Portugal. Vale sempre a pena conhecer melhor as mulheres que fazem História e, em especial, a do nosso país.
Vale a pena ler esta biografia de grande qualidade e acessível ao grande público.

Hoje tive o prazer de estar aqui

29 de Outubro 2007

(Imagem daqui )

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Tsunami


Não houve vaga que não atingisse a paz singular do meu universo
Em rota de colisão o mar-força destroça
Não sou 100% pós-moderna
Mas sempre pós-tsunami interior



(imagem daqui )

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Big Calm

Nisto dos blogs, por vezes, surge a interrogação: "Para que serve um blog?" É inevitável. Já me deparei por aqui com respostas ocas, outras bem interessantes, outras humorísticas. Na verdade, serve para muitas e distintas "coisas", consoante as pessoas. E acho que pode ser positivo.
O que acontece é exactamente o que acontece sempre: a vida. E nela todos os cambiantes e matizes de que somos feitos. Com novas tecnologias, fazemos um diferente registo histórico. Do mundo e de cada um de nós. Cria-se um registo. Marca-se um percurso. Que também se apaga. Mas na complexa teia de inter-relações, algo permanece inapagável. E na realidade incorpora-se este novo registo submundano. Provavelmente, em muitas situações reais, hiper-realistas mesmo, o que acontece não aconteceria sem ter passado por aqui.
Um blog pode ser tantas coisas: positivas e negativas.
Dentre as últimas, destaco formas de funcionamento como catapulta para as "luzes da ribalta", onde pode não existir verdadeira consistência real. Mas isso é como na vida, em geral.
Pela positiva, destaco a sua existência como "espaço" de intervenção efectiva do mais comum cidadão. E ainda o mero registo de emoções, sentimentos, pensamentos, etc de cada detentor de tal espaço. Movimento pelo qual, de forma poderosa e inovadora, se torna possível um auto-conhecimento e uma auto-análise, deste modo, fenómenos permanentemente actualizados. E sobretudo partilhados.
Esta pequena e modesta reflexão acerca do virtual resulta de uns largos meses de existência deste blog, e após este "timing" pessoal, a questão coloca-se-me mais. Quer isto dizer, com alguma frequência e urgência. Desta pergunta tão simples, pode resultar a finalização abrupta de blogs que acontece tantas vezes e já me foi dado observar. Mas também pode resultar a sua continuidade. No entanto, em cada dia, a pergunta permanece e a resposta estará implícita em cada mero "abrir da página".

Hoje, o meu registo vai para este videoclip delicioso, a eterna música a fazer-se ouvir...
É bom ter calma, uma grande calma... Mesmo que às cegas. Mesmo que de olhos tapados.
E é bom fazer existir um pouco dessa calma aqui.


sábado, 20 de outubro de 2007

"Canto de mim mesmo"


Com a estrondosa música venho, com as minhas cornetas e tambores,
Não só toco marchas para os vencedores aclamados, também as toco para os conquistados e abatidos.
Ouviste dizer que foi bom vencer?
Também te digo que é bom perder, as batalhas perdem-se com o mesmo espírito com que se ganham.

Toco e volto a tocar pelos mortos,

Sopro por eles a minha mais alta e alegre melodia.

Vivas pelos vencidos!
E por aqueles cujos vasos de guerra se afundaram no mar!
E pelos náufragos também!
E por todos os generais que perderam e por todos os vencidos heróis!
E pelos inumeráveis heróis desconhecidos iguais aos maiores heróis
conhecidos!
Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo



(Imagem: trabalho de Richard Dana)

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Pobreza

É suposto pensarmos na pobreza. É suposto falarmos dela e enfrentá-la. Talvez averiguar porque é que ainda existe. Talvez fazer algo que ajude a acabar com ela...
Mas todos sabemos como é difícil erradicar um mal. Quase sempre, quando se corta de um lado, ele aparece num outro. No entanto, a demissão cómoda em relação ao que sabemos estar errado também pode ser inadmissível.
A chamada ajuda humanitária é importante. Às vezes, a oportunidade de a praticarmos pode estar mesmo ali ao nosso lado. Porque a pobreza reveste muitas formas, umas mais evidentes, outras camufladas. A questão coloca-se, desde logo, na sua identificação. É certo que existem situações de pobreza óbvia. Olhar para essas situações incomoda mas há quem não nos permita não olhar. Por vezes, a pobreza é "posta" aí para ser olhada na sua crueza, brutalidade e radicalidade. É por isso que admiro o trabalho de
Sebastião Salgado. A dimensão artística do seu trabalho fotográfico parece-me admirável. No entanto, é o seu olhar de intervenção que mais me cativa. E obriga-me a olhar...
A pobreza é uma realidade. Mas que integra diversos níveis da realidade e, por isso, distintos planos de análise. Julgo que todos se interpenetram. E talvez seja essa a razão profunda pela qual a pobreza não desaparece da face do nosso planeta.
A pobreza a que devemos acudir é aquela que é mais premente: a fome, a falta de condições sanitárias e de cuidados de saúde, o direito à habitação, à educação... Mas as outras formas de pobreza influenciam e perpetuam aquela, a mais urgente no combate. Refiro-me à pobreza de espírito, à pobreza de diálogo, à pobreza de solidariedade, à pobreza de ideais, à pobreza de afectos... A ausência de horizontes alargados e de perspectivas de progresso para as sociedades humanas, isso tudo é também aquilo que origina a pobreza ao nível mais primário e elementar.


O perfeito alheamento do outro em que vive a sociedade actual, a sociedade onde existe "fartura", onde existe riqueza, é também pobreza. A questão é: aqueles que nada têm para se alimentar, não podem ter qualquer tipo de intervenção real na sua situação. Estão dominados pela insatisfação das necessidades mais elementares. Mas aqueles que já têm essas necessidades satisfeitas, são só esses que podem alcançar, então, a realização de necessidades mais elevadas (à maneira de
Maslow e da sua pirâmide das necessidades). Mais elevadas como é o caso da necessidade de contribuir para um mundo melhor, por ex., ou na mesma linha, a necessidade de concretizar esse desejo mediante planos de intervenção eficazes e sua implementação efectiva. A questão é que também aqui existe pobreza. Não há muitos ideais nem há muitas crenças na possibilidade de um mundo melhor. E esta pobreza, tal como a outra, inibe toda a acção. Problema dos problemas, não podemos comprar ideais. Nem crenças. Só nos resta criá-los e criá-las.

A pobreza do diálogo, a pobreza de gestos de entreajuda, a pobreza do olhar... Talvez seja necessário combater esta pobreza que co-habita com a abundância, para chegar a acabar com a outra.
Bem sei, sou uma idealista.

(Imagens: fotografias de Sebastião Salgado)

sábado, 13 de outubro de 2007

Estrelas, poeiras e buracos negros...


Por estes dias, ouvi uma notícia que me pareceu super interessante e digna de ser assinalada. Entre o que se escuta por aí, é preciso fazer triagens. Feita a minha, seleccionei este facto, agora relembrado à luz de novas imagens obtidas, e que já há algum tempo tem vindo a suscitar a minha admiração e curiosidade (espanto filosófico, se quiserem...). Também uma certa alegria.
Refere-se a nós e refere-se às estrelas. Existe algo mais atraente? Aquelas estrelinhas tão bonitas, a piscar no céu, são feitas da matéria que está na nossa origem. Na do planeta, na da vida em geral, em última análise, na origem da nossa vida de seres humanos.

Cientistas, astrónomos e astrofísicos em particular, constataram através das suas investigações, desenvolvidas ao longo dos últimos anos, e a partir de imagens que lhes vão sendo enviadas do espaço, o seguinte facto extraordinário: há poeira estelar nas imediações de buracos negros. Assim sendo, pode pensar-se, desde já, que esta poeira, matéria que estará na origem das próprias estrelas, provém de um local onde, hipoteticamente, tudo é sugado e nada é devolvido. Onde nada escapa ao desaparecimento para um algures...
Pelos vistos, ou alguma coisa não é "engolida" ou é-nos devolvida pelos buracos negros. Porque fica por ali, nas imediações dos ditos buracos negros, até chegar a ser visível por nós. Visão esta que não posso deixar de considerar como resultado de trabalhos de "gigantes"! Quando quer, o ser humano é capaz de coisas magníficas. Pena que não se distribuam sempre as energias de uma forma mais acertada para o futuro da nossa espécie.

Assim sendo, fica a interrogação: o universo formou-se a partir de um buraco negro?! Que mistérios encerram estes estranhos locais do universo? Afinal, a vida surgiu das "trevas"?! Interrogações que ficam no ar, para pensar, sempre à espera de mais novidades...

Quando dizemos que somos "feitos" de estrelas, podemos em alternativa avançar que somos feitos de poeira estelar que "convive" com buracos negros... A diferença reside provavelmente, entre outros importantes aspectos, numa questão de transformações da matéria e no facto de ela existir sob maior ou menor ordem, organização e complexidade.

Fica esta menção, nada "científica", nada conclusiva, mas repleta da minha mais profunda admiração!

Para mais informação sobre... seleccionei aqui

De destacar também a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Doris Lessing. Justamente merecido. Uma grande escritora que nos tem proporcionado uma insubstituível visão do ser humano. Porque não se têm publicado mais as suas obras?!

O facto do Prémio Nobel da Paz ter ido para Al Gore, bom, neste caso, já se me colocam algumas dúvidas quanto a tal decisão.

Bom fim-de-semana!

(Imagem daqui )

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Era uma vez...


Era uma vez um rei e esse rei tinha um trono. Por vezes, o rei pensava em partilhar o seu trono com outras pessoas, pois eram muitas as ocasiões em que se sentia sózinho. Assim descobriu que estava entediado. Todos os seus domínios lhe pareciam cinzentos para lá da sua vastidão geográfica. Todos os súbditos lhe pareciam desinteressantes. A sua inteira obediência era uma constante e já nem sabia que destino dar a tantas ofertas e tantos presentes que à sua volta se empoeiravam. Por vezes, noite dentro, saía do seu quarto, e pé ante pé, ia espreitar as tantas coisas que possuía. Vezes houve em que julgou ouvir risos abafados. Podia jurar que todos aqueles objectos estavam animados, embora adormecidos. Podia jurar que se riam dele e que esse estranho riso era de troça. Troça da sua inutilidade e vã existência.

O rei sentia-se muito aborrecido com este seu estado de espírito. Foi por isso que teve a ideia de arranjar uma rainha. Foi difícil escolhê-la porque as pretendentes eram mais que muitas. Finalmente, decidiu-se por uma futura rainha que parecia divertida e calma de uma só vez. E passou assim a partilhar com ela os seus dias, percorrendo na sua companhia os corredores do seu imponente castelo, os quais se estendiam longa e solenemente, carregados de uma atmosfera fria. Pairava no ar um vazio, uma certa ausência de sinais de vida.

Corrido tempo, o rei voltou a sentir-se entediado. Mas a acrescer veio o facto de a rainha ter perdido o seu bom humor e ter começado a sentir igualmente um indescritível tédio. Tinha lido algures que se tratava do spleen, requintadamente retratado por Baudelaire e Proust. Mas nada disso aliviava o mal-estar dum e doutro.
O rei ainda fez uma iluminada tentativa para alegrar a rainha: ofereceu-lhe uma varinha de condão. Em tempos, tinha-se divertido bastante com ela. E a rainha também andou divertida por uns tempos, transformando flores em abóboras e abóboras em flores; tornando homens em mulheres e mulheres em homens; espalhando amor, desamor, ódio, alegria e tristeza a seu bel-prazer. Uma vez transformou um homem em rato e fartou-se de rir. Uma vez até se lembrou de apanhar o rei desprevenido e transformá-lo em súbdito. Foi realmente um dos momentos mais divertidos da vida da rainha. Nem sequer lhe ocorreu que o rei pudesse ter feito o mesmo com ela, inúmeras vezes. Estava demasiado entretida com transformações.
Uma outra vez, lembrou-se de usar a varinha mágica de condão, ou lá o que era aquela batuta brilhante, em si mesma. O desejo era sentir-se feliz. E ficou. Mas acabou por achar desagradável tanta felicidade. E usou o toque mágico para ser infeliz, de novo.

Assim se passaram vários e longos anos. O spleen escorria cada vez mais pelas paredes do imenso castelo. Essa atmosfera invadia cada vez mais a pele e o pensamento quer do rei, quer da rainha. Decidiram então ter principezinhos. E em pouco tempo, ecoavam no castelo choros, gritos e risos de dois filhos dos reis: um principezinho e uma princesinha. Foram bons tempos no castelo deste rei e sua rainha. Mas os principezinhos faziam justiça ao ditado "quem sai aos seus, não degenera". E em poucos anos, os risos de crianças no castelo evaporaram-se... Quem fosse visitar as encantadoras crianças, depressa reparava no seu aborrecimento permanente. Nada as satisfazia, tudo as aborrecia. Os seus desejos eram ordens e os súbditos fizeram de tudo para as alegrar. Indiferença...
Felizmente, o rei tinha um anjo protector. E a rainha outro. Estes anjos tinham umas amigas fadas. Foi assim que em reunião de emergência, perante tal estado de coisas, decidiram todos em conjunto accionar o plano radical que tinham sempre guardado para casos destes.

Uma grande tempestade abateu-se sobre o castelo. A terra tremeu e as grossas paredes frias abriram frestas e cairam. O rei, no meio deste desabar brutal, ainda ficou ferido, mas os anjos providenciaram a fuga de todos a salvo. À volta, todo o reino mostrava a face da destruição. As terras ardiam, os súbditos gritavam e fugiam, os animais morriam. Enquanto corria, olhando à sua volta, cheia de medo, a rainha lembrou-se do que tinha lido acerca do inferno, imaginado por Dante. Mas isso só a fez fugir mais depressa. Foi assim que esta família: rei, rainha e seus principezinhos se viram sem nada. Na miséria. O rei nunca mais se recompôs totalmente dos seus ferimentos. E a vida transformou-se. Sem varinha de condão. Mas por obra e graça dos anjos e das fadas.

Um belo dia, daqueles em que uma peça de fruta e um pedaço de pão lhes foi possível arranjar... Estavam todos sentados à beira de um riacho, apreciando a parca refeição... O rei olhou a sua rainha, depois os filhos... E sentiu-se feliz. Viu perante si a perspectiva do dia seguinte, sem possuir nada agora... e lembrou-se de que tinha muito para fazer. E sentiu-se feliz. Olhou de novo a rainha e depois as crianças. Quis dar-lhes o que estava em falta. E sentiu-se feliz.
De imediato, rainha e principezinhos sorriram. Não sabiam porquê, mas também descobriam a felicidade. Uma espécie de anti-spleen que acabavam de encontrar. Fome, sede e desconforto. Trabalhos e canseiras, lutas em espera... O delírio da existência como incógnita. A vida em modo experimental. Sem conclusões científicas. Nem líricas. Até porque a rainha tinha perdido todos os seus livros no meio da reviravolta e confusão. E a varinha de condão... essa também não resistiu aos estragos.
A vida é bela!
Psicanálise de Contos de Fadas made in A.P.

sábado, 6 de outubro de 2007

Joie de vivre!

É preciso saber temperar a vida com pequenas doses de alegria. Há pequenas coisas simples que estão aí para nos dar essa alegria.
Saberei encontrá-las, aproveitá-las?
Sei que é isso a sabedoria, a verdadeira. E estou a aprender...
Por agora, com algo tão simples como uma musiquinha. Nunca conseguiria ser feliz sem música. Jamais.
Bom fim-de-semana para todos!


quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Alma Lusa ou Filosofia da Saudade

Para quem tem uma alma lusa... que o mesmo é dizer, para quem vive o sentimento da saudade.
Quando se olha o Tejo, jogo de sombras e névoas, ou ainda iluminado pela intensa claridade... quando se ouve, ao longe, o fado... toda a força da vida se condensa nessa intensa emoção que é saudade.
Consciência da relatividade de tudo? Vestígio de um passado repleto de partidas?
Podemos não saber. Mas faz parte de nós.



Poeta

Quando a primeira lágrima aflorou
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.
Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade...
Sou, em futuro, o tempo que passou -
Em num, o antigo tempo é nova idade.
Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.
Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.

Teixeira de Pascoaes




"Só o que no mais íntimo da alma acalenta as altas aspirações dignificadoras do homem, só o que ama profundamente a vida e sente presente sempre o obsediante enigma do ser, aquele que, ao erguer nos braços uma criança, ergue uma alvorada no coração; o que compreende o sorriso macerado do humilde, a agonia do sonhador infecundo, tudo o que há de grande, trágico e inexprimível; esse só pode ensinar a vida."
Leonardo Coimbra, in Dispersos II


(Imagens: fotografia de autor desconhecido e Morte de Inês de Columbano Bordalo Pinheiro)

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Sem palavras...

Descobri recentemente e fiquei fascinada por este diferente olhar sobre a realidade.
O olhar transforma a realidade? Ou ela contém em si tantas outras coisas, ocultas expressões de vida que só alguns conseguem ver?
Um exemplo de talento devastador.




Diane Arbus
. Uma fotógrafa extraordinária (à qual voltarei...), revela o verdadeiro significado da expressão:

"uma imagem vale por mil palavras"


sábado, 29 de setembro de 2007

Quem vai ao mar, perde o lugar.



Conchas, estrelas do mar
Pérolas
Nas tuas mãos cativas
Todos os dias
Nada te pode fazer parar
Outros as esperam
P'ra respirar
H2O tem oxigénio
E toda a faina contém um prémio
Mas na do mar, vai-se o lugar

Sempre assim foi com os pescadores
Tão semelhantes, no fundo iguais
Partem com a fé
Dos sonhadores

E quando chegam, luz nos olhares
O tempo ausente do qual regressam
Em noites mostra
Areias plenas
Almas inquietas
Pleno o silêncio
O dos ruídos
Quando confessam
Que já se foi o seu lugar...

(Imagem: pintura de Jacek Yerka)

domingo, 23 de setembro de 2007

Fast informação


Pode parecer improvável e ser loucura querer retroceder até a um tempo onde a informação não circulava. Ao tempo das trevas... Mas não, não se trata disso. Trata-se do seu reverso: a fast informação, aquela que se assemelha cada vez mais à fast food. Pode dar jeito e permitir-nos tempo para outras coisas. Mas sempre...torna-se agressiva.
Parece inútil dedicar algum tempo a uma refeição para degustar e digerir devagar. Quando há tanto para fazer... Mas, pessoalmente, comer à pressa, provoca-me dores de estômago.

Pois, a questão é que a informação está no mesmo ponto, digamos. Há tanta... nada mais resta a não ser consumi-la a correr. E, neste caso, nunca se passa fome. Mas provoca-me dores de cabeça. Na verdade, sinto-me algo decepcionada relativamente a isto. Perante tanto que vejo e que oiço, não chegando a consciencializar-me efectivamente de quase nada, a não ser daquilo que consigo dolorosamente seleccionar; perante tantos conteúdos que se auto-disponibilizam a cada segundo na atmosfera circundante... a cabeça fica um pouco à roda e os olhos inflamam-se perante tanta imagem. Os sons nem sempre se distinguem com limpidez... E fica a sensação de existir perante um tremendo inatingível... Parece que o humano criou o sobre-humano. Sim, porque é impossível consumir efectivamente e com profundidade tanta informação.

E se Deus é a transcendência... não sei se a actual sociedade da informação criada pelo ser humano não será algo como as antigas e belas catedrais góticas: um impulso para as alturas, para o humanamente impossível...ou seja, uma tentativa de superação das nossas limitações... As novas catedrais góticas constituiram-se, entretanto, enquanto propagação infinita de informação; as magníficas torres góticas são agora as invasões permanentes e incisivas de imagens, sons e ideias esboçadas superficialmente. Hiper-ficheiros informatizados ou em vias de o ser. Dos quais, na sua esmagadora maioria, nunca chegaremos a fazer o download, via rede neuronal. O que não invalida o impacto subconsciente desta informação fragmentada.

E perante este sentimento de impotência que me diz, por ex., ser impossível ler todos os livros que quero ler, entre os tantos que surgem, irrealizável ver todos os filmes que desejo ver, entre os variadíssimos que se disponibilizam, ou mera quimera tentar entender todas as grandes questões que diariamente se assinalam como importantes para a humanidade, assim como todo um etcetera interminável... perante esta limitação e esta percepção da finitude da minha condição humana... o mais estranho ainda é que não posso viver sem tudo isto, sem este infindável ruído, feito eco mesmo ao longo das horas de sono...

Sou filha do meu tempo? Serei... Mas não me é possível "mergulhar nele"... Tudo se transforma vertiginosamente e cada vez mais, aqui à superfície, nada é certo.

(A imagem é Cabeza rafaelesca estallando de Dalí )

sábado, 15 de setembro de 2007

Sonho versus realidade


A inquietação germina quando olhamos à nossa volta e absorvemos o que constitui o nosso mundo.
Gostaria de acreditar ainda nos sonhos. Aqueles que impulsionam para a acção e pelos quais não desistimos de tentar melhorar o mundo.
Utopias para quê?, dirão alguns... Pois a mim parece-me que, em certos dias, em certas horas, só mesmo um pouco de existir utópico nos pode dar o oxigénio de que precisamos para respirar e aqui permanecer.

Absorver o mundo pode ser devastador. Vão-se os sonhos da inocência, os sonhos da infância doce e serena, os sonhos de que existe justiça, os sonhos de que o crime não compensa, os sonhos de que existimos para construir e não para destruir. O sonho de que podemos todos ser um pouco felizes...

A cisão entre sonho e realidade é, hoje, brutal. Viver num mundo paralelo, perfeito e bonitinho, seria fuga. Viver num mundo onde a ilusão já é quase só virtual, é fuga também. A não-fuga implica "pegar" na realidade e transformá-la para a tornar mais humana. Mas, por onde começar? A ruptura do nosso eu interior começa quando tomamos nota do que vai pelo mundo global , a uma escala que hoje é a nossa. Mas onde está a nossa capacidade de intervir nele globalmente? Será que esta nova escala nos endurece tanto que ficamos incapazes de agir?

Como posso ajudar e melhorar a situação de tantas crianças africanas, por ex., que vejo morrer de fome na televisão? Como posso impedir que tanta gente morra num hospital de um lugar recôndito do mundo, sem as condições sanitárias e a dignidade devidas enquanto seres humanos? Como posso conviver com a ideia de que todos os dias, tantas crianças desaparecem no mundo? Como posso sentir a dor de todos e de tantos, quando estou limitada a sentir com autenticidade os casos um a um? É certo que posso fazer alguma coisa, é certo. Mas parece sempre tão pouco... No entanto, sinto que não é permitido desistir.

Pode a dor tornar-se uma mera abstracção?
Como lidar com o irracional que permanentemente parece irromper na nossa condição de seres racionais?
Gostava que um pouco mais de sonho civilizacional penetrasse na realidade...
Como disse o nosso poeta António Gedeão:

"(...) sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança..."

( A imagem é de autor desconhecido)

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O que encontro hilariante...


Bom, é verdade, raras vezes me deparo com algo do domínio do verdadeiramente hilariante. Mas quando acontece, fico simplesmente...feliz! Como já se sabe, rir pode ser o melhor remédio. Mas encontrar do que rir pode ser difícil! Ou não. Não, quando nos deparamos com alguém que sabe "caçar" bem as fragilidades dos seres humanos, incluindo as suas. E não importa a idade. O humor pode ser muito espontâneo mas também muito refinado.
Certo, certo é que me tenho rido. E mesmo à gargalhada! Valham-me coisas destas para revigorar a proximidade do Outono, os dias mais pequenos, no que se refere a luz solar. Mas maiores quanto a tarefas e obrigações...
Há pequenas coisas da vida que dão infinito prazer. E quando o hilariante coincide com o pertinente: eis o brilhante!

O que vale a pena,
vale...

"(...) saía eu da loja de novidades Hammacher Schlemmer, consumido pela indecisão entre comprar uma prensa de patos computorizada ou a melhor guilhotina portátil do mundo, quando embati, qual Titanic, num velho icebergue que conhecera na faculdade, o Max Endorfina. (...) lançou-se no relato da sua recente boa estrela.
-O que eu te posso dizer, meu menino, é que acertei em cheio. Entrei em contacto com o meu eu espiritual interior, e a partir daí foi só farturar.
-És capaz de ser mais específico? - inquiri (...).
-Se calhar não devia estar para aqui a palrar com alguém de frequência inferior, mas, sendo nós velhos amigos...
-Frequência?
-Estou a falar de dimensões. Aqueles de nós que se movimentam nas oitavas superiores são aconselhados a não esbanjar iões saudáveis em trogloditas mortais, no rol dos quais tu te incluis - sem ofensa. (...)
Ainda me beliscava quando Endorfina deu início à sua história.




- OK - disse ele. Flashback para há seis meses atrás, quando o rapazinho da Sra. Endorfina, aqui o Max, andava em bolandas, emocionalmente falando, devido a uma série de atribulações, (...). Primeiro, uma coisinha fofa da Formosa a quem eu andava a dar um curso de anatomia hidráulica dá-me com os pés, trocando-me por um aprendiz de pasteleiro; de seguida, sou processado numa soma equivalente a muitos presidentes mortos por fazer marcha atrás com o meu Jaguar contra uma Sala de Leitura de Cientologia. Acrescente-se a isso que o meu único filho de um anterior holocausto conubial desiste do seu lucrativo escritório de advocacia para se tornar ventríloquo.

Por isso, ali estava eu, deprimido e assustado, esquadrinhando a cidade em busca de uma raison d'être, um centro espiritual, por assim dizer, quando, subitamente, saído do éter, deparo com um anúncio no último número da Vibes Illustrated. Um estaminé tipo spa, que faz a liposucção do nosso mau karma, conduzindo-nos a uma frequência superior, na qual podemos por fim exercer o nosso controle sobre a natureza, à la Fausto. Como regra geral, não sou muito dado a morder o isco em esquemas manhosos destes, (...) digo cá para comigo: o que é que pode correr mal? Ainda por cima é de borla. Não pedem guito. O sistema baseia-se numa variante da escravatura, mas, em troca, recebemos uns cristais que nos concedem certos e determinados poderes, e toda a erva-de-São-João que sejamos capazes de engolir. Ah, não estou a mencionar que ela humilha-nos. Mas faz parte da terapia. (...)

É claro que fui o bombo da festa durante um bocado, mas, deixa-me dizer-te, aquilo anulou-me o ego. De repente, apercebi-me de que tinha vivido em vidas anteriores - primeiro como um simples burgomestre, e depois como Lucas Cranach, o Velho... ou não, já não me lembro, talvez fosse o Puto. Mas enfim, quando dou por ela, acordo na minha enxerga grosseira e a minha frequência, upa-upa na estratosfera. Tenho, tipo, um nimbo em redor do meu ócciput e sou omnisciente. Quero dizer, acerto finalmente no duplo em Belmont e ao fim de uma semana já reúno multidões de cada vez que apareço no Bellagio em Las Vegas. Se calha estar inseguro acerca dum cavalo, ou se estou indeciso em pedir cartas ou passar, no blackjack, há um consórcio de anjos com quem entro em contacto. Naquela, lá porque alguém tem asas e é feito de ectoplasma, não quer dizer que não possa dar palpites. (...)

-E ela não se faz pagar por esse serviço? - inquiri, com o coração a abrir as asas como um falcão-peregrino.
-Bem, sabes como é, os avatares são assim. São todos uns bacanos.

Nessa noite, (...) dei comigo a voar para oeste, em direcção ao Centro da Ascensão Sublime e à sua divindade residente, (...).
-Quer dizer, queres entrar em contacto com o teu centro espiritual.
-Exactamente. Queria aumentar de frequência, e queria ser capaz de levitar, teletransportar-me, desmaterializar-me, e possuir suficiente omnisciência para adivinhar antecipadamente os numerais aleatoriamente seleccionados que constituem a lotaria do Estado de Nova Iorque.



(...) As humilhações sucediam-se como parte de um ritual de purificação do ego e, finalmente, quando foi decretado que eu iria fazer amor com uma sacerdotisa kármica que era uma sósia do Bill Parcell, decidi que estava na hora de encerrar a actividade. Rastejando de costas sob a vedação de arame farpado, dei de frosques a meio da noite e mandei parar o último 747 para o Upper West Side.

-E então - disse a minha mulher, com a tolerância benigna de quem se dirige a alguém prematuramente senil -, desmaterializaste-te e teletransportaste-te para aqui, ou isso é um guardanapo de cocktail da Continental Airlines(...)?
-Não fiquei tempo suficiente para isso - respondi, (...), mas suei o suficiente para aprender este pequeno tour de force. - E isto dizendo, pus-me a levitar quinze centímetros acima do soalho, pairando, enquanto a boca dela se lhe abria como a do protagonista no Tubarão. (...)
-Os teus amigos de baixa frequência simplesmente não percebem - disse eu, (...). Foi neste momento que comecei a aperceber-me de que não conseguia descer (...).

Segundo as últimas notícias que me chegaram, Max Endorfina desmaterializou-se para nunca mais se rematerializar. Quanto a Galaxie Sunstroke e ao seu Centro de Ascensão Sublime, dizem os rumores que foram desmantelados por inspectores das Finanças e posteriormente reencarnados - ou terá sido reencarcerados? (...)."

in Errar é humano - flutuar é divino, Woody Allen, Pura Anarquia

(Imagens: daqui daqui
e daqui )

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Pavarotti...



(Imagem: retrato de Pavarotti, pintado por Nelson Shanks )

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Burocracia divina



(Imagem daqui )