quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Era uma vez...


Era uma vez um rei e esse rei tinha um trono. Por vezes, o rei pensava em partilhar o seu trono com outras pessoas, pois eram muitas as ocasiões em que se sentia sózinho. Assim descobriu que estava entediado. Todos os seus domínios lhe pareciam cinzentos para lá da sua vastidão geográfica. Todos os súbditos lhe pareciam desinteressantes. A sua inteira obediência era uma constante e já nem sabia que destino dar a tantas ofertas e tantos presentes que à sua volta se empoeiravam. Por vezes, noite dentro, saía do seu quarto, e pé ante pé, ia espreitar as tantas coisas que possuía. Vezes houve em que julgou ouvir risos abafados. Podia jurar que todos aqueles objectos estavam animados, embora adormecidos. Podia jurar que se riam dele e que esse estranho riso era de troça. Troça da sua inutilidade e vã existência.

O rei sentia-se muito aborrecido com este seu estado de espírito. Foi por isso que teve a ideia de arranjar uma rainha. Foi difícil escolhê-la porque as pretendentes eram mais que muitas. Finalmente, decidiu-se por uma futura rainha que parecia divertida e calma de uma só vez. E passou assim a partilhar com ela os seus dias, percorrendo na sua companhia os corredores do seu imponente castelo, os quais se estendiam longa e solenemente, carregados de uma atmosfera fria. Pairava no ar um vazio, uma certa ausência de sinais de vida.

Corrido tempo, o rei voltou a sentir-se entediado. Mas a acrescer veio o facto de a rainha ter perdido o seu bom humor e ter começado a sentir igualmente um indescritível tédio. Tinha lido algures que se tratava do spleen, requintadamente retratado por Baudelaire e Proust. Mas nada disso aliviava o mal-estar dum e doutro.
O rei ainda fez uma iluminada tentativa para alegrar a rainha: ofereceu-lhe uma varinha de condão. Em tempos, tinha-se divertido bastante com ela. E a rainha também andou divertida por uns tempos, transformando flores em abóboras e abóboras em flores; tornando homens em mulheres e mulheres em homens; espalhando amor, desamor, ódio, alegria e tristeza a seu bel-prazer. Uma vez transformou um homem em rato e fartou-se de rir. Uma vez até se lembrou de apanhar o rei desprevenido e transformá-lo em súbdito. Foi realmente um dos momentos mais divertidos da vida da rainha. Nem sequer lhe ocorreu que o rei pudesse ter feito o mesmo com ela, inúmeras vezes. Estava demasiado entretida com transformações.
Uma outra vez, lembrou-se de usar a varinha mágica de condão, ou lá o que era aquela batuta brilhante, em si mesma. O desejo era sentir-se feliz. E ficou. Mas acabou por achar desagradável tanta felicidade. E usou o toque mágico para ser infeliz, de novo.

Assim se passaram vários e longos anos. O spleen escorria cada vez mais pelas paredes do imenso castelo. Essa atmosfera invadia cada vez mais a pele e o pensamento quer do rei, quer da rainha. Decidiram então ter principezinhos. E em pouco tempo, ecoavam no castelo choros, gritos e risos de dois filhos dos reis: um principezinho e uma princesinha. Foram bons tempos no castelo deste rei e sua rainha. Mas os principezinhos faziam justiça ao ditado "quem sai aos seus, não degenera". E em poucos anos, os risos de crianças no castelo evaporaram-se... Quem fosse visitar as encantadoras crianças, depressa reparava no seu aborrecimento permanente. Nada as satisfazia, tudo as aborrecia. Os seus desejos eram ordens e os súbditos fizeram de tudo para as alegrar. Indiferença...
Felizmente, o rei tinha um anjo protector. E a rainha outro. Estes anjos tinham umas amigas fadas. Foi assim que em reunião de emergência, perante tal estado de coisas, decidiram todos em conjunto accionar o plano radical que tinham sempre guardado para casos destes.

Uma grande tempestade abateu-se sobre o castelo. A terra tremeu e as grossas paredes frias abriram frestas e cairam. O rei, no meio deste desabar brutal, ainda ficou ferido, mas os anjos providenciaram a fuga de todos a salvo. À volta, todo o reino mostrava a face da destruição. As terras ardiam, os súbditos gritavam e fugiam, os animais morriam. Enquanto corria, olhando à sua volta, cheia de medo, a rainha lembrou-se do que tinha lido acerca do inferno, imaginado por Dante. Mas isso só a fez fugir mais depressa. Foi assim que esta família: rei, rainha e seus principezinhos se viram sem nada. Na miséria. O rei nunca mais se recompôs totalmente dos seus ferimentos. E a vida transformou-se. Sem varinha de condão. Mas por obra e graça dos anjos e das fadas.

Um belo dia, daqueles em que uma peça de fruta e um pedaço de pão lhes foi possível arranjar... Estavam todos sentados à beira de um riacho, apreciando a parca refeição... O rei olhou a sua rainha, depois os filhos... E sentiu-se feliz. Viu perante si a perspectiva do dia seguinte, sem possuir nada agora... e lembrou-se de que tinha muito para fazer. E sentiu-se feliz. Olhou de novo a rainha e depois as crianças. Quis dar-lhes o que estava em falta. E sentiu-se feliz.
De imediato, rainha e principezinhos sorriram. Não sabiam porquê, mas também descobriam a felicidade. Uma espécie de anti-spleen que acabavam de encontrar. Fome, sede e desconforto. Trabalhos e canseiras, lutas em espera... O delírio da existência como incógnita. A vida em modo experimental. Sem conclusões científicas. Nem líricas. Até porque a rainha tinha perdido todos os seus livros no meio da reviravolta e confusão. E a varinha de condão... essa também não resistiu aos estragos.
A vida é bela!
Psicanálise de Contos de Fadas made in A.P.