«Conceptualmente, podemos chamar verdade àquilo que não podemos mudar; metaforicamente, ela é o solo em que nos movemos e o céu que se expande por cima de nós.»
A filosofia é aquele lugar único e maravilhoso, onde é possível pensar, questionar, problematizar e rever o mundo com um "olhar" que se insinua "por detrás" do próprio mundo.
Perante o que nos rodeia projectamos sempre um determinado "olhar"... Esse "olhar" é sempre uma interpretação. Daí as aspas.
Ora, interpretar coloca sempre problemas. Porque nada é o que é, como o "vemos" e ponto final. Basta querer "ver" de novo e há sempre mais qualquer coisa...a acrescentar ou, no mínimo, a reformular.
A interpretação - cada vez mais disso me convenço - sofre tremendos efeitos relacionados com o ponto de vista do observador. O autor desse tal "olhar". Sem querer cair num qualquer relativismo, dir-se-ia que nunca há um só "olhar" que seja o único válido. Porque toda a interpretação acontece num contexto x, y ou z...
Parece que a objectividade é uma mera quimera. E que nunca ninguém poderá entender-se completa e absolutamente com um "outro". Ou será, mesmo assim, ainda possível?
Talvez exista uma saída para o impasse. Perante muitos possíveis "olhares", perante múltiplas interpretações, na medida em que se encontrem pela necessidade de interacção continuada, não há outra hipótese: é preciso definir e estabelecer regras para interpretar. Esclarecer o contexto da interpretação é a via para a definição dos princípios subjacentes a essa interpretação e das regras que ela deve respeitar.
Kant resolveu a questão pela noção de sujeito transcendental, salvando assim a possibilidade da objectividade científica. Afirmou também a evidência de uma lei moral em nós. E ainda apelou à existência de uma possível intersubjectividade. Precisamente no que se refere a questões das mais susceptíveis quanto a "interpretações": as questões relacionadas com a nossa faculdade de julgar. Questões de gosto e de apreciação estética, por exemplo. Deste acordo intersubjectivo depende, no limite, a possibilidade da existência de progresso numa vida em comunidade da humanidade. O encontro do "eu" com os "outros". Outros "eus"... Neste caso, o contexto é universal e a solução tem um carácter formal.
Vamos todos interpretar da mesma forma? Ou o que acontece é criarmos uma permanente reinterpretação do mundo (concreto), a partir da contribuição de múltiplas e, na verdade, infinitas interpretações individuais e subjectivas porque vividas?
Até que ponto o nosso "olhar" é efectivamente individual? Provavelmente, há um pouco de nós em cada "visão" do mundo do "outro", sendo o inverso igualmente válido. Mas se cada um de nós se eclipsar enquanto pólo de interpretação do mundo, toda a "visão" desse mesmo mundo corre o risco de se tornar um vazio.
Toda a interpretação tem uma força única. Talvez o mundo não avance sem tal. Interpretar pode ser, por isso, vitalmente importante. Por paradoxal que pareça, interpretar tem tanto de força como de fragilidade. Uma interpretação de alguma coisa, de um facto, de um acontecimento, de um livro, de um filme, etc... é sempre só e apenas uma interpretação. Indispensável, inevitável, legítima e frágil na sua visão isolada.
Apelar a regras de interpretação, a normas e a princípios pode parecer limitador. No entanto, talvez só por essa via possa desenvolver-se uma interpretação consequente. É que só assim é possível comunicá-la. E poderemos viver sem tal dimensão? Poderemos alterar a nossa natureza de seres sociais? Não é ela constitutiva do nosso "eu" mais íntimo? Como concretizar qualquer acto comunicacional sem averiguar das condições necessárias e a todos exigidas para a sua efectiva realização? Fingir comunicação não é suficiente. E a verdadeira intercomunicabilidade tem regras. Tal como toda a interpretação e todo o discurso. Podemos lamentar(?), mas as "pontes" só se constroem com convenções. A própria sociedade é convencional. Os próprios actos anti-convencionais são resultado de convenções e, por isso mesmo, convenções também. Qualquer suposto projecto (ou anti-projecto) designadamente anárquico, nada mais é do que a redução da esfera de aplicação de outras convenções a universos micro-sociais. O que há é apenas um outro contexto e suas regras específicas.
Interpretar dentro de um contexto, nortear a interpretação de acordo com as regras definidas, nada disto lhe retira a liberdade de acontecer, antes lhe confere o direito de crescer e ser real.
A nossa interpretação é frágil. Está sempre suspensa sobre o mundo e sobre nós próprios, à espera de ser contrariada. Na sua fragilidade reside a sua força. Ela nasce do seu enérgico estatuto de direito à intervenção, pessoal e intransmissível-transmissível, no processo de Interpretação.
É preciso interpretar e fazê-lo com o nosso próprio "olhar".
(Imagem: Interpretationen de Zademack)
Hannah Arendt, Verdade e Política
A filosofia é aquele lugar único e maravilhoso, onde é possível pensar, questionar, problematizar e rever o mundo com um "olhar" que se insinua "por detrás" do próprio mundo.
Perante o que nos rodeia projectamos sempre um determinado "olhar"... Esse "olhar" é sempre uma interpretação. Daí as aspas.
Ora, interpretar coloca sempre problemas. Porque nada é o que é, como o "vemos" e ponto final. Basta querer "ver" de novo e há sempre mais qualquer coisa...a acrescentar ou, no mínimo, a reformular.
A interpretação - cada vez mais disso me convenço - sofre tremendos efeitos relacionados com o ponto de vista do observador. O autor desse tal "olhar". Sem querer cair num qualquer relativismo, dir-se-ia que nunca há um só "olhar" que seja o único válido. Porque toda a interpretação acontece num contexto x, y ou z...
Parece que a objectividade é uma mera quimera. E que nunca ninguém poderá entender-se completa e absolutamente com um "outro". Ou será, mesmo assim, ainda possível?
Talvez exista uma saída para o impasse. Perante muitos possíveis "olhares", perante múltiplas interpretações, na medida em que se encontrem pela necessidade de interacção continuada, não há outra hipótese: é preciso definir e estabelecer regras para interpretar. Esclarecer o contexto da interpretação é a via para a definição dos princípios subjacentes a essa interpretação e das regras que ela deve respeitar.
Kant resolveu a questão pela noção de sujeito transcendental, salvando assim a possibilidade da objectividade científica. Afirmou também a evidência de uma lei moral em nós. E ainda apelou à existência de uma possível intersubjectividade. Precisamente no que se refere a questões das mais susceptíveis quanto a "interpretações": as questões relacionadas com a nossa faculdade de julgar. Questões de gosto e de apreciação estética, por exemplo. Deste acordo intersubjectivo depende, no limite, a possibilidade da existência de progresso numa vida em comunidade da humanidade. O encontro do "eu" com os "outros". Outros "eus"... Neste caso, o contexto é universal e a solução tem um carácter formal.
Vamos todos interpretar da mesma forma? Ou o que acontece é criarmos uma permanente reinterpretação do mundo (concreto), a partir da contribuição de múltiplas e, na verdade, infinitas interpretações individuais e subjectivas porque vividas?
Até que ponto o nosso "olhar" é efectivamente individual? Provavelmente, há um pouco de nós em cada "visão" do mundo do "outro", sendo o inverso igualmente válido. Mas se cada um de nós se eclipsar enquanto pólo de interpretação do mundo, toda a "visão" desse mesmo mundo corre o risco de se tornar um vazio.
Toda a interpretação tem uma força única. Talvez o mundo não avance sem tal. Interpretar pode ser, por isso, vitalmente importante. Por paradoxal que pareça, interpretar tem tanto de força como de fragilidade. Uma interpretação de alguma coisa, de um facto, de um acontecimento, de um livro, de um filme, etc... é sempre só e apenas uma interpretação. Indispensável, inevitável, legítima e frágil na sua visão isolada.
Apelar a regras de interpretação, a normas e a princípios pode parecer limitador. No entanto, talvez só por essa via possa desenvolver-se uma interpretação consequente. É que só assim é possível comunicá-la. E poderemos viver sem tal dimensão? Poderemos alterar a nossa natureza de seres sociais? Não é ela constitutiva do nosso "eu" mais íntimo? Como concretizar qualquer acto comunicacional sem averiguar das condições necessárias e a todos exigidas para a sua efectiva realização? Fingir comunicação não é suficiente. E a verdadeira intercomunicabilidade tem regras. Tal como toda a interpretação e todo o discurso. Podemos lamentar(?), mas as "pontes" só se constroem com convenções. A própria sociedade é convencional. Os próprios actos anti-convencionais são resultado de convenções e, por isso mesmo, convenções também. Qualquer suposto projecto (ou anti-projecto) designadamente anárquico, nada mais é do que a redução da esfera de aplicação de outras convenções a universos micro-sociais. O que há é apenas um outro contexto e suas regras específicas.
Interpretar dentro de um contexto, nortear a interpretação de acordo com as regras definidas, nada disto lhe retira a liberdade de acontecer, antes lhe confere o direito de crescer e ser real.
A nossa interpretação é frágil. Está sempre suspensa sobre o mundo e sobre nós próprios, à espera de ser contrariada. Na sua fragilidade reside a sua força. Ela nasce do seu enérgico estatuto de direito à intervenção, pessoal e intransmissível-transmissível, no processo de Interpretação.
É preciso interpretar e fazê-lo com o nosso próprio "olhar".
(Imagem: Interpretationen de Zademack)