sábado, 29 de setembro de 2007

Quem vai ao mar, perde o lugar.



Conchas, estrelas do mar
Pérolas
Nas tuas mãos cativas
Todos os dias
Nada te pode fazer parar
Outros as esperam
P'ra respirar
H2O tem oxigénio
E toda a faina contém um prémio
Mas na do mar, vai-se o lugar

Sempre assim foi com os pescadores
Tão semelhantes, no fundo iguais
Partem com a fé
Dos sonhadores

E quando chegam, luz nos olhares
O tempo ausente do qual regressam
Em noites mostra
Areias plenas
Almas inquietas
Pleno o silêncio
O dos ruídos
Quando confessam
Que já se foi o seu lugar...

(Imagem: pintura de Jacek Yerka)

domingo, 23 de setembro de 2007

Fast informação


Pode parecer improvável e ser loucura querer retroceder até a um tempo onde a informação não circulava. Ao tempo das trevas... Mas não, não se trata disso. Trata-se do seu reverso: a fast informação, aquela que se assemelha cada vez mais à fast food. Pode dar jeito e permitir-nos tempo para outras coisas. Mas sempre...torna-se agressiva.
Parece inútil dedicar algum tempo a uma refeição para degustar e digerir devagar. Quando há tanto para fazer... Mas, pessoalmente, comer à pressa, provoca-me dores de estômago.

Pois, a questão é que a informação está no mesmo ponto, digamos. Há tanta... nada mais resta a não ser consumi-la a correr. E, neste caso, nunca se passa fome. Mas provoca-me dores de cabeça. Na verdade, sinto-me algo decepcionada relativamente a isto. Perante tanto que vejo e que oiço, não chegando a consciencializar-me efectivamente de quase nada, a não ser daquilo que consigo dolorosamente seleccionar; perante tantos conteúdos que se auto-disponibilizam a cada segundo na atmosfera circundante... a cabeça fica um pouco à roda e os olhos inflamam-se perante tanta imagem. Os sons nem sempre se distinguem com limpidez... E fica a sensação de existir perante um tremendo inatingível... Parece que o humano criou o sobre-humano. Sim, porque é impossível consumir efectivamente e com profundidade tanta informação.

E se Deus é a transcendência... não sei se a actual sociedade da informação criada pelo ser humano não será algo como as antigas e belas catedrais góticas: um impulso para as alturas, para o humanamente impossível...ou seja, uma tentativa de superação das nossas limitações... As novas catedrais góticas constituiram-se, entretanto, enquanto propagação infinita de informação; as magníficas torres góticas são agora as invasões permanentes e incisivas de imagens, sons e ideias esboçadas superficialmente. Hiper-ficheiros informatizados ou em vias de o ser. Dos quais, na sua esmagadora maioria, nunca chegaremos a fazer o download, via rede neuronal. O que não invalida o impacto subconsciente desta informação fragmentada.

E perante este sentimento de impotência que me diz, por ex., ser impossível ler todos os livros que quero ler, entre os tantos que surgem, irrealizável ver todos os filmes que desejo ver, entre os variadíssimos que se disponibilizam, ou mera quimera tentar entender todas as grandes questões que diariamente se assinalam como importantes para a humanidade, assim como todo um etcetera interminável... perante esta limitação e esta percepção da finitude da minha condição humana... o mais estranho ainda é que não posso viver sem tudo isto, sem este infindável ruído, feito eco mesmo ao longo das horas de sono...

Sou filha do meu tempo? Serei... Mas não me é possível "mergulhar nele"... Tudo se transforma vertiginosamente e cada vez mais, aqui à superfície, nada é certo.

(A imagem é Cabeza rafaelesca estallando de Dalí )

sábado, 15 de setembro de 2007

Sonho versus realidade


A inquietação germina quando olhamos à nossa volta e absorvemos o que constitui o nosso mundo.
Gostaria de acreditar ainda nos sonhos. Aqueles que impulsionam para a acção e pelos quais não desistimos de tentar melhorar o mundo.
Utopias para quê?, dirão alguns... Pois a mim parece-me que, em certos dias, em certas horas, só mesmo um pouco de existir utópico nos pode dar o oxigénio de que precisamos para respirar e aqui permanecer.

Absorver o mundo pode ser devastador. Vão-se os sonhos da inocência, os sonhos da infância doce e serena, os sonhos de que existe justiça, os sonhos de que o crime não compensa, os sonhos de que existimos para construir e não para destruir. O sonho de que podemos todos ser um pouco felizes...

A cisão entre sonho e realidade é, hoje, brutal. Viver num mundo paralelo, perfeito e bonitinho, seria fuga. Viver num mundo onde a ilusão já é quase só virtual, é fuga também. A não-fuga implica "pegar" na realidade e transformá-la para a tornar mais humana. Mas, por onde começar? A ruptura do nosso eu interior começa quando tomamos nota do que vai pelo mundo global , a uma escala que hoje é a nossa. Mas onde está a nossa capacidade de intervir nele globalmente? Será que esta nova escala nos endurece tanto que ficamos incapazes de agir?

Como posso ajudar e melhorar a situação de tantas crianças africanas, por ex., que vejo morrer de fome na televisão? Como posso impedir que tanta gente morra num hospital de um lugar recôndito do mundo, sem as condições sanitárias e a dignidade devidas enquanto seres humanos? Como posso conviver com a ideia de que todos os dias, tantas crianças desaparecem no mundo? Como posso sentir a dor de todos e de tantos, quando estou limitada a sentir com autenticidade os casos um a um? É certo que posso fazer alguma coisa, é certo. Mas parece sempre tão pouco... No entanto, sinto que não é permitido desistir.

Pode a dor tornar-se uma mera abstracção?
Como lidar com o irracional que permanentemente parece irromper na nossa condição de seres racionais?
Gostava que um pouco mais de sonho civilizacional penetrasse na realidade...
Como disse o nosso poeta António Gedeão:

"(...) sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança..."

( A imagem é de autor desconhecido)

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O que encontro hilariante...


Bom, é verdade, raras vezes me deparo com algo do domínio do verdadeiramente hilariante. Mas quando acontece, fico simplesmente...feliz! Como já se sabe, rir pode ser o melhor remédio. Mas encontrar do que rir pode ser difícil! Ou não. Não, quando nos deparamos com alguém que sabe "caçar" bem as fragilidades dos seres humanos, incluindo as suas. E não importa a idade. O humor pode ser muito espontâneo mas também muito refinado.
Certo, certo é que me tenho rido. E mesmo à gargalhada! Valham-me coisas destas para revigorar a proximidade do Outono, os dias mais pequenos, no que se refere a luz solar. Mas maiores quanto a tarefas e obrigações...
Há pequenas coisas da vida que dão infinito prazer. E quando o hilariante coincide com o pertinente: eis o brilhante!

O que vale a pena,
vale...

"(...) saía eu da loja de novidades Hammacher Schlemmer, consumido pela indecisão entre comprar uma prensa de patos computorizada ou a melhor guilhotina portátil do mundo, quando embati, qual Titanic, num velho icebergue que conhecera na faculdade, o Max Endorfina. (...) lançou-se no relato da sua recente boa estrela.
-O que eu te posso dizer, meu menino, é que acertei em cheio. Entrei em contacto com o meu eu espiritual interior, e a partir daí foi só farturar.
-És capaz de ser mais específico? - inquiri (...).
-Se calhar não devia estar para aqui a palrar com alguém de frequência inferior, mas, sendo nós velhos amigos...
-Frequência?
-Estou a falar de dimensões. Aqueles de nós que se movimentam nas oitavas superiores são aconselhados a não esbanjar iões saudáveis em trogloditas mortais, no rol dos quais tu te incluis - sem ofensa. (...)
Ainda me beliscava quando Endorfina deu início à sua história.




- OK - disse ele. Flashback para há seis meses atrás, quando o rapazinho da Sra. Endorfina, aqui o Max, andava em bolandas, emocionalmente falando, devido a uma série de atribulações, (...). Primeiro, uma coisinha fofa da Formosa a quem eu andava a dar um curso de anatomia hidráulica dá-me com os pés, trocando-me por um aprendiz de pasteleiro; de seguida, sou processado numa soma equivalente a muitos presidentes mortos por fazer marcha atrás com o meu Jaguar contra uma Sala de Leitura de Cientologia. Acrescente-se a isso que o meu único filho de um anterior holocausto conubial desiste do seu lucrativo escritório de advocacia para se tornar ventríloquo.

Por isso, ali estava eu, deprimido e assustado, esquadrinhando a cidade em busca de uma raison d'être, um centro espiritual, por assim dizer, quando, subitamente, saído do éter, deparo com um anúncio no último número da Vibes Illustrated. Um estaminé tipo spa, que faz a liposucção do nosso mau karma, conduzindo-nos a uma frequência superior, na qual podemos por fim exercer o nosso controle sobre a natureza, à la Fausto. Como regra geral, não sou muito dado a morder o isco em esquemas manhosos destes, (...) digo cá para comigo: o que é que pode correr mal? Ainda por cima é de borla. Não pedem guito. O sistema baseia-se numa variante da escravatura, mas, em troca, recebemos uns cristais que nos concedem certos e determinados poderes, e toda a erva-de-São-João que sejamos capazes de engolir. Ah, não estou a mencionar que ela humilha-nos. Mas faz parte da terapia. (...)

É claro que fui o bombo da festa durante um bocado, mas, deixa-me dizer-te, aquilo anulou-me o ego. De repente, apercebi-me de que tinha vivido em vidas anteriores - primeiro como um simples burgomestre, e depois como Lucas Cranach, o Velho... ou não, já não me lembro, talvez fosse o Puto. Mas enfim, quando dou por ela, acordo na minha enxerga grosseira e a minha frequência, upa-upa na estratosfera. Tenho, tipo, um nimbo em redor do meu ócciput e sou omnisciente. Quero dizer, acerto finalmente no duplo em Belmont e ao fim de uma semana já reúno multidões de cada vez que apareço no Bellagio em Las Vegas. Se calha estar inseguro acerca dum cavalo, ou se estou indeciso em pedir cartas ou passar, no blackjack, há um consórcio de anjos com quem entro em contacto. Naquela, lá porque alguém tem asas e é feito de ectoplasma, não quer dizer que não possa dar palpites. (...)

-E ela não se faz pagar por esse serviço? - inquiri, com o coração a abrir as asas como um falcão-peregrino.
-Bem, sabes como é, os avatares são assim. São todos uns bacanos.

Nessa noite, (...) dei comigo a voar para oeste, em direcção ao Centro da Ascensão Sublime e à sua divindade residente, (...).
-Quer dizer, queres entrar em contacto com o teu centro espiritual.
-Exactamente. Queria aumentar de frequência, e queria ser capaz de levitar, teletransportar-me, desmaterializar-me, e possuir suficiente omnisciência para adivinhar antecipadamente os numerais aleatoriamente seleccionados que constituem a lotaria do Estado de Nova Iorque.



(...) As humilhações sucediam-se como parte de um ritual de purificação do ego e, finalmente, quando foi decretado que eu iria fazer amor com uma sacerdotisa kármica que era uma sósia do Bill Parcell, decidi que estava na hora de encerrar a actividade. Rastejando de costas sob a vedação de arame farpado, dei de frosques a meio da noite e mandei parar o último 747 para o Upper West Side.

-E então - disse a minha mulher, com a tolerância benigna de quem se dirige a alguém prematuramente senil -, desmaterializaste-te e teletransportaste-te para aqui, ou isso é um guardanapo de cocktail da Continental Airlines(...)?
-Não fiquei tempo suficiente para isso - respondi, (...), mas suei o suficiente para aprender este pequeno tour de force. - E isto dizendo, pus-me a levitar quinze centímetros acima do soalho, pairando, enquanto a boca dela se lhe abria como a do protagonista no Tubarão. (...)
-Os teus amigos de baixa frequência simplesmente não percebem - disse eu, (...). Foi neste momento que comecei a aperceber-me de que não conseguia descer (...).

Segundo as últimas notícias que me chegaram, Max Endorfina desmaterializou-se para nunca mais se rematerializar. Quanto a Galaxie Sunstroke e ao seu Centro de Ascensão Sublime, dizem os rumores que foram desmantelados por inspectores das Finanças e posteriormente reencarnados - ou terá sido reencarcerados? (...)."

in Errar é humano - flutuar é divino, Woody Allen, Pura Anarquia

(Imagens: daqui daqui
e daqui )

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Pavarotti...



(Imagem: retrato de Pavarotti, pintado por Nelson Shanks )

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Burocracia divina



(Imagem daqui )

domingo, 2 de setembro de 2007

Acredita em Deus? (3)


Termino (por agora...) esta minha pequena reflexão sobre o "divino" com uma última referência, desta vez a Paul Auster. Que responde ele a esta questão, como se posiciona face ao tema...? Assinalo que, apesar de toda a minha admiração por ele, como desde sempre tem ficado evidente, apesar disso e embora concorde inteiramente com muitas das apreciações que faz... a minha posição, relativamente ao tema, situa-se na linha da de Michael Cunningham.

O tema ou a hipótese da transcendência não é de hoje, obviamente. É de sempre. O que significa um alheamento profundo do passado, mas também da actualidade, não o pensarmos renovadamente. O fenómeno religioso tem hoje implicações novas, por exemplo, ligadas à violência. Novas embora reproduzindo, em grande medida, o passado. Passado este no qual, em nome de Deus, se incrementou a violência a vários níveis. O modo como ela hoje lhe está associada tem outros contornos, os da nossa época.

Nem a propósito, oiço a notícia de que deflagrou nova polémica a propósito de uma caricatura sobre o islamismo, desta vez na Suécia. Como encarar este tipo de acontecimentos? E sobretudo, como viver em paz?
Por outro lado, e relativamente ao mesmo, temos agora acesso a novos escritos da Madre Teresa de Calcutá, pelos quais ficamos a saber que inúmeras vezes se interrogou e chegou a duvidar da existência de Deus. O livro está aí muito em breve mesmo, e é mais um convite à reflexão sobre o tema. Acreditar pode implicar justificações, mas não acreditar também as pode exigir. É o que penso.

Diz Paul Auster acerca de Deus e da religião (entrevistado por Antonio Monda):

"Passemos sem rodeios à pergunta fundamental: acreditas que Deus existe?
- Não, não acredito. Mas isso não quer dizer que não considere a religião um elemento culturalmente fundamental da existência.
Porque definiste a religião como um elemento fundamental da existência?
- Porque só um ignorante poderia dizer o contrário, e basta estudar a história para nos darmos conta disso. No que me diz respeito, quis aprofundar o Antigo e o Novo Testamentos e confrontar-me com aquilo que eles ensinam.
(...)
O que foi que, a partir dos catorze anos, deixou de te convencer?
- O facto de existir um ser omnipotente responsável por todas as coisas criadas. Mas tive - e continuo a ter - muitos problemas com a religião organizada.
Julgas que se trata de uma coisa negativa?
- Não em si mesma. No entanto, creio que as religiões se mancharam, cada uma na sua própria história, com muitos erros. Pense-se em quantas vezes foi usado o nome de Deus para conquistar ou para matar. Pense-se na Inquisição, na expulsão dos judeus de Espanha, ou nos conflitos entre hindus e muçulmanos. Hoje, nas religiões, assusta-me a tendência fundamentalista e vejo à minha volta um mundo cada vez mais cheio de fanáticos. O problema do absolutismo é que nos leva a ficarmos convencidos de que somos depositários da verdade. Quando partimos desse pressuposto, abrimos a porta a algumas prevaricações e desumanizamos os que são diferentes de nós.
(...)
Quais são os efeitos benéficos [da religião] que mais aprecias?
- O conforto que a religião pode dar a quem se sente angustiado perante o sofrimento ou o mistério. Mas também este aspecto traz consigo o risco da ilusão.

No início do livro, o Nathan de As Loucuras de Brooklyn procura «um fim silencioso para a minha vida triste e ridícula», enquanto que, no final, se proclama «o homem mais feliz que alguma vez viveu». De um ponto de vista de percurso interior, o que há aqui de diferente do que acontece ao George Bailey de Do Céu Caiu Uma Estrela?
-O facto de a proclamação de felicidade de Nathan acontecer na manhã do dia 11 de Setembro, poucos minutos antes dos ataques terroristas.
O filme de Capra não exclui de todo novas dores ou novas tragédias.
- Sei-o muito bem, mas ele era católico e sabia o que eram a graça e a providência. Eu, em contrapartida, vejo na coincidência entre as declarações de felicidade e a iminência da tragédia um mistério insondável."

Sobre Antonio Monda: Docente de Realização Cinematográfica na Universidade de Nova Iorque, colabora na secção de cultura do jornal italiano La Repubblica e é crítico cinematográfico de La Rivista dei Libri. Realizador de documentários e uma longa metragem (Dicembre), é também organizador de festivais e eventos no Guggenheim Museum e noutras importantes instituições culturais dos Estados Unidos.

(Imagens: "Promessas" de José Malhoa e fotografia de Paul Auster - autor desconhecido)