segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Leonardo


Ultimamente, um certo acaso conduziu-me ao retomar da leitura de um texto lido há uns bons anos atrás. É verdade, há livros que vale a pena reler, sobretudo por serem lidos em épocas diferentes da nossa vida. Acontece sempre o impacto da leitura anterior ser reconvertido noutras formas de impacto. E, sobretudo, são outros os detalhes aos quais se dá toda a atenção. Se, noutros tempos, esta leitura pareceu algo fastidiosa (talvez pelo carácter de imposição de que se revestia); agora, ela surgiu-me como muito mais interessante. E trouxe até mim toda a singela humanidade desse extraordinário e enigmático ser (pintor mas não só...) que foi Leonardo da Vinci.

Sobre a infância de Leonardo, diz-nos Freud:

"Sabemos muito pouco sobre a juventude de Leonardo. Nasceu em 1452 na pequena cidade de Vinci, entre Florença e Empoli; era filho natural, o que naquela época não era socialmente considerado como uma mácula importante; o seu pai era Ser Piero da Vinci, notário e descendente de uma família de agricultores que tomaram o seu apelido da localidade de Vinci; a mãe chamava-se Caterina e era provavelmente camponesa, tendo casado mais tarde com outro habitante de Vinci. Esta mãe não reaparece na vida de Leonardo; apenas o escritor Mereschkowski crê poder reencontrar os seus vestígios. A única informação segura sobre a infância de Leonardo é dada por um documento oficial do ano de 1457, um registo de impostos florentino, no qual está incluído Leonardo, entre os membros da família Vinci, como filho ilegítimo de Ser Piero, com a idade de cinco anos. Do seu casamento com Donna Albiera, Ser Piero não teve filhos e por isso o pequeno Leonardo pôde ser educado na casa paterna. Só a deixaria quando entrou como aprendiz - desconhece-se com que idade - para o atelier de Andrea del Verrocchio. No ano de 1472 o nome de Leonardo encontra-se já na lista dos membros da Compagnia dei Pittori. É tudo."
Sabemos, portanto, pouco.

Os seus contemporâneos teciam-lhe diversas críticas, relativas ao seu trabalho como pintor. Sobre Leonardo, enquanto pintor e homem de ciência, diz-nos também Freud:
"Embora nos tenha legado obras-primas da pintura, enquanto as suas descobertas científicas permaneceram inéditas e inexploradas, nunca nele o investigador deu plena liberdade à carreira do artista; muitas vezes a prejudicou seriamente e talvez tenha acabado por abafá-la.
(...)

Que ocultava, pois, a personalidade de Leonardo à compreensão dos seus contemporâneos? (...) Nos tempos da Renascença era habitual a reunião num só indivíduo de múltiplas capacidades; o próprio Leonardo era, de facto, um dos exemplos mais brilhantes dessa época.
(...)

É bem possível que este retrato de um Leonardo radioso, alegre e apreciador dos prazeres não corresponda senão a um primeiro e mais longo período da vida do mestre. A partir daí, quando a decadência do poderio de Lodovico Moro o obrigou a deixar Milão, a sua esfera de actividade e a sua posição segura, e a levar uma existência agitada e sem brilho até ao seu último asilo em França, o humor de Leonardo pode ter-se tornado mais sombrio e alguns aspectos estranhos do seu carácter terem-se acentuado. A deslocação dos seus interesses, que com os anos se foram paulatinamente transferindo da sua arte para a ciência, também deve ter contribuído para alargar o fosso entre si e os seus contemporâneos."

Esta faceta de múltiplos interesses, por parte de Leonardo da Vinci, é o que me parece inegavelmente interessante e mesmo atraente na sua personalidade. O que não deixou de lhe trazer, certamente, inúmeros inconvenientes. Mas, na verdade, Leonardo foi muito mais do que um pintor, foi um homem muito especial, com uma personalidade enigmática e um génio prodigioso. Talvez perdido entre tantos aspectos que alimentavam intensamente o seu infinito desejo de conhecimento. O que Freud interpreta como resultante de um mecanismo de sublimação. Sublimação ou não, valeu a pena ter existido. Talvez a sublimação, tal como Freud a entendia, seja positiva e, sem dúvida, produtiva.
Esta personalidade fascinante, revelada em todos os seus trabalhos, está muito para além do ícone que funcionou como elemento aglutinador no romance de Dan Brown, "O Código da Vinci".

"Todas as experiências com que, (...), perdia tempo em vez de pintar assiduamente por encomenda e enriquecer como Perugino, seu ex-condiscípulo, pareciam-lhes (aos seus contemporâneos) caprichosas brincadeiras ou tornavam-no mesmo suspeito de se dedicar à «magia negra». (...) Quando dissecava cadáveres de cavalos e de seres humanos, construía máquinas voadoras, estudava a nutrição das plantas e a sua reacção aos venenos, afastava-se bastante dos comentadores de Aristóteles e aproximava-se dos desprezados alquimistas, em cujos laboratórios a investigação experimental tinha pelo menos encontrado um refúgio durante esses tempos adversos.
Para a sua pintura isto teve como consequência que Leonardo perdesse o gosto pelo uso do pincel, pintasse cada vez menos, deixasse muitas obras inacabadas e pouco se interessasse pelo seu destino. Era também isto que os seus contemporâneos lhe criticavam, pois a sua atitude perante a arte continuava a ser para eles um enigma.

Admiradores ulteriores de Leonardo tentaram apagar do seu carácter a mancha da inconstância, alegando que o que se lhe censura é próprio dos grandes artistas. (...) A penosa luta com a obra, a fuga final perante a sua realização e a indiferença pelo seu destino ulterior podem encontrar-se em muitos outros artistas; mas sem dúvida que Leonardo apresentava este comportamento ao mais alto grau."
Excertos de :
"Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci", S. Freud


A leitura deste texto de Freud é interessante. Muito bem escrito, como foi sempre característico do seu autor, refere vários factos sobre Leonardo, mas perspectivados de um ponto de vista que é tudo menos superficial.
Evidentemente, todo o texto reflecte o esquema da interpretação psicanalítica. Hoje, este esquema pode ser considerado algo limitador, mas continua a ser referência para a criação de novas perspectivas acerca dos labirintos da mente e da vida humanas.
Neste caso, a interpretação profunda do perfil psicológico de alguém como Leonardo da Vinci mostra-nos, antes de mais, a sua humanidade repleta de contradições, de medos, de dúvidas, de inconstâncias e de arrependimentos. Não um ser perfeito, mas um ser com defeitos, fraquezas e recalcamentos. Se sublimou tudo isso, soube fazê-lo com resultados magníficos!
Sinceramente... considerando a nossa época actual... e usando linguagem psicanalítica:
Às vezes, um bocadinho de sublimação não faz mal nenhum. Pelo contrário!



(Imagens: Desenhos de Leonardo da Vinci obtidos em pesquisa do Google)