quarta-feira, 21 de março de 2007

Para uma amiga (em especial)


Porque gostaria de o ler em conjunto com a minha amiga, aqui fica o texto, na expectativa de que assim , essa leitura partilhada se torne possível... com ela e com todos.

" Meu caro senhor Kappus:

Longo tempo passou sobre a sua última carta. Não me queira mal. Trabalho, incómodos e preocupações quotidianas impediram-me de lhe escrever. Além disso, desejava que a minha resposta fosse o eco de dias calmos e bons. (...)
(...) Sabemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil não nos deve nunca abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, razão mais forte para a desejar. Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres (...) precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (...) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. (...)

(...) Nunca, nem na morte, que é difícil, nem no amor, que também é difícil, aquele para quem a vida é uma coisa grave terá a ajuda de qualquer luz, de qualquer resposta já dada, de qualquer caminho de antemão traçado. Não há regras gerais para nenhum destes deveres que trazemos escondidos em nós e que transmitimos àqueles que nos seguem sem jamais os esclarecer. Na medida em que estamos sós, o amor e a morte tocam-se. As exigências dessa terrível empresa que é o amor através da nossa vida não são à medida dessa vida e jamais estaremos à altura de merecer o amor desde os primeiros passos. Mas se, à força de constância, consentirmos em suportá-lo como dura aprendizagem, (...), talvez um progresso insensível, um certo alívio possa então resultar para aqueles que nos seguirem (...).

A mulher, que uma vida mais espontânea, mais fecunda, mais confiante habita, está sem dúvida mais perto do humano do que o homem - (...). Esta humanidade, que na dor e na humilhação amadurece a mulher, virá à superfície quando esta quebrar as cadeias da sua condição social. E os homens, que não sentem aproximar-se esse dia, ficarão surpreendidos e vencidos. (...) E estas palavras: «rapariga», »mulher», não significarão somente o contrário de «homem», mas qualquer coisa de pessoal, valendo por si mesma; não apenas um complemento, mas uma forma completa de vida: a mulher na sua verdadeira humanidade.

O amor deixará de ser o comércio de um homem e de uma mulher para ser o de duas humanidades. Mais perto do humano, será infinitamente delicado e cheio de atenções, bom e claro em tudo o que fizer ou desfizer. Este será o amor que, lutando duramente, agora preparamos: duas solidões que se protegem, se completam, se limitam e se inclinam uma para a outra. Isto, ainda: Não julgue que o amor que conheceu adolescente se tenha perdido. Não foi ele que fez germinar em si aspirações ricas e fortes, projectos de que ainda hoje vive? Tenho a certeza de que esse amor apenas sobrevive, tão forte, tão poderoso na sua recordação, pelo facto de ter sido a primeira ocasião de estar só no mais profundo de si próprio, o primeiro esforço interior que tentou na sua vida.

Meu caro senhor Kappus, todos os meus votos de felicidade. Seu
Rainer Maria Rilke (Roma, 14 de Maio de 1904)"
in Cartas A Um Jovem Poeta,Rainer Maria Rilke

Depois de reler este magnífico texto, não posso deixar de comentar o quanto é surpreendente o facto de existirem mentes assim. Realmente, há homens superiores às mulheres! Quando conseguem entendê-las melhor que elas mesmas... Claro que Rilke teve uma grande referência para avaliar das inquietações femininas: Lou Andreas-Salomé.
Acrescento ainda o seguinte: há uma certa nostalgia em relação a escrever cartas. Deixámos de as escrever?

Para mais detalhes sobre Rilke e alguns poemas, quem estiver interessado pode clicar, por exemplo, aqui