sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Um clássico do Iluminismo


O dia 11 de Fevereiro aproxima-se e a nossa decisão acerca da IVG tem que ser tomada. Transcrevo aqui um excerto de um texto do grande filósofo alemão Immanuel Kant. Porque creio serem as suas palavras as mais fortes para nos fazerem pensar no valor que têm as decisões que tomamos. A filosofia não é um amontoado de conteúdos meramente teóricos sem qualquer possível utilização, mas, ao contrário, um apelo ao pensar autónomo e sobretudo a um agir consciente.
Uma questão tão séria para nós, enquanto seres humanos rumo a um futuro, não deve ser deixada ao acaso. Na verdade, todos nós somos tomados por emoções, mais ou menos contraditórias, acerca de questões polémicas. No entanto, questões como esta, envolvendo posições de natureza eminentemente ética, justificam um assumir da nossa condição de seres racionais. Porque nunca é demais estarmos certos da justeza das nossas decisões e, neste caso, sem dúvida, da sua universalidade. É impossível um sistema jurídico que permita tratar na perfeição cada caso como único. Não passa de utopia. Nesta medida, muitas vezes, torna-se necessária uma suspensão, não do juízo (esse exige-se) mas da emoção. Talvez assim os valores que queremos preservar para a Humanidade possam ser identificados mais claramente. A questão da IVG é, antes de mais, uma questão de valores. Difícil será escolher entre o valor da liberdade e o valor da vida. Mas a nossa hierarquia de valores tem que ser estabelecida, agora. Que cada um possa fazê-lo, pensando por si próprio, é o que mais se deverá desejar. Não é uma decisão fácil e também sabemos que não há soluções perfeitas. Mas é preferível um engano consciente a um silêncio desinteressado. Parece-me. Porque errar é humano. De qualquer modo, só tem hipótese de errar quem tenta. E só quem tenta pode contar para um mundo melhor.

É possível que as nossas decisões consequentes sejam perturbadas negativamente pelos ruídos do mundo mas nunca pelas palavras de um filósofo com esta nobreza de pensamento. Tais palavras, permanecendo actuais, só podem ser um apelo e um incentivo à nossa efectiva intervenção na vida pública enquanto cidadãos do mundo e cidadãos portugueses.
Participe-se no referendo!


" O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.

A preguiça e a cobardia são as causas porque os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda a vida; e também por que a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a superintendência deles. (...)

É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer uma tal tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional ou, antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, porque não está habituado a este movimento livre. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e iniciar então um andamento seguro.

Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for dada liberdade. Com efeito, sempre haverá alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem para por si mesmo pensar. Importante aqui é que o público, o qual antes fora por eles sujeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é a isso incitado. Semear preconceitos é muito pernicioso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente, ou os seus predecessores, foram os seus autores. Por conseguinte, um público só muito lentamente pode chegar à ilustração. Por meio de uma revolução poderá talvez levar-se a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento.

Mas, para esta ilustração, nada mais se exige do que a liberdade. Mas agora ouço gritar de todos os lados:
não raciocines! Diz o oficial: não raciocines mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! Diz o senhor mundano: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei! Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade!"

Kant, « O Que é o Iluminismo?», in A Paz Perpétua e Outros Opúsculos