terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Convite à leitura - Do Tempo

Marguerite Yourcenar

Esta senhora com um ar tão simples foi autora de uma expressão que nunca pude esquecer. Essa expressão é precisamente aquela que serve de título a um dos seus livros: “O Tempo, esse grande escultor”. Consiste num conjunto de textos, mais ou menos soltos, todos eles de uma riqueza inesgotável para uma leitora como eu, apreciadora do estilo. E como não me parece que se deva ler só o que é última edição, mas sim o que nos possa trazer algo de novo, recomendo para sempre esta leitura, a fazer-se sem pressa mas imprescindível. Porque é muitas vezes do passado que surge a compreensão do presente... Estes textos são um olhar carregado de fina sensibilidade, enorme sabedoria e terno despojamento, um olhar que só uma grande mulher e escritora como Marguerite Yourcenar nos poderia oferecer.

Transcrevo algumas passagens do meu particular agrado, neste livro, relativas ao modo como pode ser por nós apreciado o “antigo”nas obras de arte, nomeadamente na escultura, e porque é que o apreciamos (sendo esse o caso). Indo além deste primeiro sentido do “esculpir do tempo”, há que interpretar de uma forma mais livre e num segundo sentido possível, de acordo com a autora. O de que o tempo também nos esculpe a nós... Por isso, também podemos ser obras de arte... E disso estou certa porque já encontrei algumas dessas realizações artísticas.


“ No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida. Fechou-se a primeira fase em que, pela mão do escultor, ela passou de bloco a forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar-se a adoração, a admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus sucessivos de erosão e desgaste, até chegar, pouco a pouco, ao estado de mineral informe a que o seu escultor a tinha arrancado.

(...) Esses objectos duros trabalhados para imitar formas de vida orgânica sofreram, à sua maneira, o equivalente do cansaço, do envelhecimento, da desgraça. Mudaram como o tempo nos muda. As sevícias dos cristãos ou dos Bárbaros, as condições em que viveram soterradas durante séculos de abandono até que as redescobrimos, os restauros sábios ou desajeitados por que passaram, bem ou mal, as sucessivas camadas, verdadeiras ou falsas, que nelas se foram sobrepondo, tudo, até a atmosfera dos próprios museus onde hoje se encontram encerradas, marca o seu corpo de metal ou pedra para todo o sempre.”

Marguerite Yourcenar, “O Tempo, esse grande escultor”


Aspasia


E ainda:

“ Algumas destas modificações são sublimes. À beleza, tal como a concebeu um cérebro humano, uma época, uma forma particular de sociedade, elas juntam a beleza involuntária que lhes vem dos acidentes da História e dos efeitos naturais do tempo. Estátuas tão bem quebradas que de cada fragmento nasce uma obra nova, perfeita pela própria segmentação (...).

(...) Por vezes a erosão do tempo e a brutalidade dos homens unem-se para criar uma aparência única que não pertence a nenhuma escola e a nenhum tempo: (...).


Rodin, Les Bourgeois de Calais


Os nossos pais restauravam as estátuas; nós tiramos-lhes os narizes falsos e as próteses que lhes acrescentaram; os nossos filhos farão com certeza outra coisa. O nosso ponto de vista actual representa ao mesmo tempo um ganho e uma perda. (...) Mas esse gosto exagerado do restauro que caracterizou todos os grandes coleccionadores a partir do Renascimento, e durou quase até aos nossos dias, tem razões mais profundas do que a da simples ignorância ou o convencionalismo ou gosto grosseiro do arranjo. Talvez mais humanos do que nós, pelo menos no campo das artes, em que procuravam sensações felizes, possuidores de uma outra sensibilidade, os nossos antepassados não gostavam das obras de arte mutiladas, das marcas de violência e morte nos deuses de pedra. Os grandes amadores de antiguidades restauravam por piedade, por piedade nós desfazemos a sua obra. Talvez nos tenhamos habituado de mais à ruína e aos ferimentos. Duvidamos de uma continuidade do gosto ou do espírito humano que torne possível a Thorvaldsen reparar Praxíteles.”

Marguerite Yourcenar, O Tempo, esse grande escultor


Praxíteles, Hermes



Thorvaldsen, escultor dinamarquês, séc. XVIII-XIX


Thorvaldsen, Estátua de Copérnico, Varsóvia

“ Aceitamos mais facilmente que essa beleza, separada de nós, abrigada em museus e não já em nossas casas seja uma beleza etiquetada e morta. O nosso sentido do patético compraz-se nestas imperfeições; a nossa predilecção pela arte abstracta faz-nos amar estas lacunas, essas fissuras que neutralizam de algum modo o poderoso elemento humano desta estatuária. De todas as modificações causadas pelo tempo, nenhuma afecta tanto as estátuas como a alteração do gosto daqueles que as admiram.”

Marguerite Yourcenar, O Tempo, esse grande escultor



Giacometti


O Humano...de carne e osso

Dorothea Lange, Migrant Mother