domingo, 11 de fevereiro de 2007

Convite à leitura: Paul Auster ( I )

Inicio este meu convite à leitura com livros de Paul Auster, um dos meus escritores preferidos.

Atribuí ao meu blog o título de “Música do Acaso”. Bom, a expressão não é da minha autoria mas sim retirada, precisamente, do título de um livro deste escritor norte-americano. Escritor que é alvo da minha maior admiração. Quando pensei em nomear o meu incipiente blog, ocorreu-me logo algo que me permitisse homenagear, mesmo que modestamente, este escritor da minha predilecção. Abrir o meu blog tornou-se assim uma constante recordação dos dias em que li este livro, “Música do Acaso”.

São muitos os livros de Auster que recordo com especial gosto. Embora não tenha lido todos os que escreveu, destaco: “ A Trilogia de Nova Iorque”, “Leviathan” e “A Música do Acaso”. Destaco porque são os meus preferidos. Não necessariamente os melhores, mas de certeza bons.

Estou à espera da edição portuguesa do seu último livro: Travels in the Scripttorium”. À espera porque gosto de ler na minha língua. Felizmente existem tradutores! Pelo que li em diagonal deste novo livro, já editado em inglês, julgo ter que o acrescentar à minha lista de favoritos. Parece-me, mais uma vez, genial.

Acredito, como por vezes se diz, que um livro pode mudar a nossa vida, tal como um filme ... Há muitas coisas que podem mudar a nossa vida, é certo. Mas um livro, com o seu ruído silencioso, pode passar despercebido. E, no entanto, pode ser tão poderoso! Os livros de Paul Auster são deste tipo.


Actualmente, Paul Auster é considerado, justamente, um dos melhores escritores norte-americanos. Todos os seus livros têm um estilo algo experimental, o que nos revela a sua permanente busca de uma expressão reveladora da verdadeira dimensão do humano, por vezes pouco clara e difusa, para nós. E que ele consegue reflectir literariamente pelos processos aparentemente mais simples, carregando de originalidade toda a construção dos seus enredos, assim como dotando-os de um nível de densidade existencial absolutamente devastador.


A meu ver, há um tema recorrente em Paul Auster, talvez a sua principal preocupação: a liberdade. Obviamente, outros temas igualmente recorrentes se misturam com este. No entanto, a minha leitura de Paul Auster situa-se inequivocamente no campo da difícil questão da liberdade. São múltiplas e geniais as formas utilizadas por Auster para nos colocar essa questão. No caso particular de “A Música do Acaso”, trata-se da liberdade e suas armadilhas. Todo o livro tem um significado especial para mim, o qual se deve ao impacto que teve, outrora, nas minhas interrogações existenciais.

Existe um outro tema insistente em Paul Auster, o qual não pode deixar de ser também assinalado: o do acaso. Quer dizer, em rigor, na minha óptica, liberdade e acaso constituem um só tema ou questão recorrente: a existência do acaso fundamenta a liberdade? Nem tudo está pré-determinado, ou se está, o ser humano faz tudo para escapar a esse determinismo. O facto de existir acaso prova que a liberdade é possível. Tudo começa por uma iniciativa mais ou menos clara para escapar aos condicionalismos aprisionantes, por parte de um personagem central ou não, conforme o enredo, personagem com o qual, de uma maneira ou de outra, nos identificamos. Depois desse primeiro pontapé de saída dado por este personagem , por vezes dado por acaso, a teia de acontecimentos decorrentes do mesmo acaso, acaba por aprisionar de novo. Conduzimos a nossa vida ou somos conduzidos por “alguma coisa”? Finalmente, vence a liberdade. E com o último acto radicalmente livre: o suicídio. Elemento perigoso e aqui entendido apenas como conclusão inevitável da procura da liberdade, na sua vertente teórica e imagética. É uma metáfora do beco sem saída que pode ser a liberdade. Não penso que Paul Auster defenda o suicídio como desfecho em caso algum da nossa vida. Parece-me antes que pretende retomar a problemática da liberdade, num sentido radical, mostrando que o absurdo existe e que muitas vezes tornamos as nossas existências absurdas, pela sede de liberdade. Pode concluir-se, assim, que a liberdade é um estado difícil, um modo de ser em permanente desafio. E que a liberdade, apesar de tudo, vale sempre a pena. Só não somos livres de sermos livres. Isto, referindo-me, em particular, ao “A Música do Acaso”, mas não só. Isto, pela minha leitura mais que mastigada, confesso. E discutível. E filosófica. Que se refere, sobretudo, aos títulos de Paul Auster que antes assinalei. Mas será assim ou não? A minha leitura será certamente uma entre muitas possíveis.

É por isso que... as palavras de Paul Auster poderão dizer muito mais do que eu:



(...) Depois dessa segunda noite, Nashe apercebeu-se de que já não tinha o controlo da situação, que tinha caído nas garras de uma força qualquer desconcertante e avassaladora. Ele era como um animal louco, correndo cegamente de um vazio para o seguinte, mas, independentemente de decidir diversas vezes parar, não conseguia fazê-lo. Todas as manhãs ia dormir dizendo para consigo que já chegava, que aquilo tinha acabado, e todas as tardes acordava com o mesmo desejo, a mesma ânsia irresistível de se arrastar de novo para o carro. Ele queria aquela solidão outra vez, aquela corrida pela noite através do vazio, aquela deambulação pela estrada ao longo da sua pele. Manteve aquilo durante a totalidade das duas semanas e cada dia avançava um pouco mais longe, cada dia tentava ir um pouco mais longe do que no dia anterior.”

Paul Auster in “A Música do Acaso”

E ainda:

“ Nashe não tinha nenhum plano definido. Quanto muito, a ideia era deixar-se andar à deriva durante um tempo, viajar de um lado para o outro a ver o que acontecia. Imaginou que ficaria farto daquilo depois de uns dois meses e nessa altura sentar-se-ia e preocupar-se-ia com o que havia de fazer a seguir. Mas passaram-se dois meses e ele ainda não estava preparado para parar. A pouco e pouco, tinha-se apaixonado pela sua nova vida de liberdade e irresponsabilidade, e uma vez que ela aconteceu, já não havia razão alguma para parar.

A velocidade era a essência, o prazer de se sentar no carro e de se lançar violentamente para a frente através do espaço. Isso tornou-se um bem acima de todos os outros, uma fome para ser alimentada a qualquer preço. Nada à sua volta durava mais do que um momento, e como um momento se seguia a outro, era como se apenas ele continuasse a existir. Ele era um ponto fixo num turbilhão de mudanças, um corpo a pairar numa quietude total enquanto o mundo corria através dele e desaparecia. O carro tornou-se um sacrário de invulnerabilidade, um refúgio onde nada o poderia magoar nunca mais. Enquanto estava a guiar, não carregava fardos, estava livre até mesmo da mais ínfima partícula da sua vida anterior. Isto não é dizer que não tinha memórias, só que elas já não pareciam trazer nenhuma da antiga angústia. Talvez a música tivesse alguma coisa a ver com isso, as intermináveis cassetes de Bach e Mozart e Verdi que ele ouvia enquanto ia sentado atrás do volante, como se os sons estivessem de algum modo a emanar dele e a inundar a paisagem, tornando o mundo visível num reflexo dos seus próprios pensamentos. Depois de três ou quatro meses, tivera apenas de entrar no carro para sentir que estava a soltar-se do seu corpo, que mal punha o pé no acelerador e começava a guiar, a música levava-o para uma esfera de leveza.”

Paul Auster in “A Música do Acaso”

Ou ainda também:

“Ele não conseguiu deixar de sentir pena dela, mas este sentimento estava também impregnado de admiração – talvez algo mais do que isso: uma suspeita de que ela podia ser alguém que ele podia amar, afinal. Por um breve momento, esteve tentado a pedir-lhe que casasse com ele, imaginando de repente uma vida de frases espirituosas e sexo afectuoso com Fiona, Juliette a crescer com irmãos e irmãs, mas não conseguia fazer com que as palavras lhe saíssem da boca.
- Vou estar fora por pouco tempo – disse por fim. – Chegou a altura da minha visita a Northfield. És bem vinda se quiseres vir comigo, Fiona.
- Claro. E o que faço com o meu emprego? Três dias doente de enfiada é ir um bocado longe demais, não achas?
- Tenho de ir ver Juliette, sabes isso. É importante.

- Há muitas coisas que são importantes. Não desapareças para sempre, só isso.
- Não te preocupes. Vou voltar. Agora sou um homem livre e posso fazer o que me der na gana.
- Estamos na América, Nashe. A casa da maldita liberdade, lembras-te? Podemos todos fazer o que queremos.
- Não sabia que eras tão patriótica.
- Aposta o teu último dólar, amigo. É o meu país, certo ou errado. É por isso que vou esperar que apareças outra vez. Porque sou livre de fazer figura de parva.
- Já te disse que vou voltar. Acabei de fazer uma promessa.
- Eu sei que fizeste. Mas isso não quer dizer que vás cumpri-la.”


Paul Auster in “A Música do Acaso”

De qualquer forma, um autor absolutamente a não perder, de leitura interessante e original, com sequências absolutamente cinematográficas e simultaneamente, literariamente denso, profundo e inquietante. Um autor cujos romances estão repletos de surpresas, porque a vida pode ser realmente surpreendente.

(a continuar)