domingo, 15 de abril de 2007

Democracia(s)

Por todo o lado ouvimos a palavra democracia. Parece-me que à semelhança da palavra amor anda bastante maltratada.
Estamos no mês de Abril e em breve comemoramos (assim será?) uma data que não deveríamos esquecer jamais. Mas que parece ter passado a ser apenas mais um feriado nacional desprovido do seu real significado. Democracia e liberdade estão intimamente ligadas. O 25 de Abril é o Dia da Liberdade. Logo, um dia que é também da democracia.
O passado deveria iluminar o caminho do futuro e é fácil deixar cair no esquecimento factos passados que por certo não gostaríamos de ver ressuscitados, a não ser como memórias instrutivas. A democracia pode ter muitos defeitos mas é ainda o único sistema onde é possível ser um pouco mais livre. Porque da liberdade há sempre muito a dizer e ainda mais a desejar. No essencial, podemos estar certos de pouco acerca dela. Talvez apenas de duas coisas: não é algo que possa existir imutável nem algo fácil. Tal como, há muito tempo atrás, um antigo filósofo disse: "Não podemos banhar-nos duas vezes na água do mesmo rio". Talvez nunca sejamos livres duas vezes da mesma maneira. Quando mais toda uma infinidade de vezes... Porque tudo flui e tudo está sujeito a um constante movimento...

As democracias hoje dificilmente poderão manter-se estáticas e inevitavelmente terão que se renovar. Resta saber como... A principal questão que se coloca é como chamar todos a intervir. Porque em democracia todos têm que colaborar. Mesmo nas democracias representativas como as nossas, todos estamos envolvidos. Ou será que muita gente prefere que outros (alguns) tomem conta dos assuntos sem qualquer contribuição da maioria?

A democracia no geral depara-se com um contrasenso do qual todos podem estar mais ou menos conscientes: se promove a liberdade, promove a possibilidade de permitir que lhe sejam feitos os mais diversificados tipos de ataques. Existirá forma de promover a liberdade mais digna e mais aberta do que esta? Um sistema que em virtude da sua própria essência se testa a si próprio constantemente, enfrentando a expressão livre de todos, não só dá espaço a todos como tem, assim, oportunidade de corrigir os inúmeros defeitos de que está impregnado. Evidentemente que liberdade não deve confundir-se com permissividade total e muito menos com um alheamento irresponsável que põe em risco a protecção que o Estado deve proporcionar a todos. Uma das razões que está na origem do famoso contrato social. As sociedades democráticas deveriam ser um espaço seguro para o exercício da liberdade mas não uma pseudo-segurança perfeita onde se elimina a liberdade para não se correrem riscos.

Não, não creio que a solução para os grandes problemas das democracias e suas liberdades esteja numa simples repressão das mesmas. Talvez numa regulamentação do exercício da liberdade. Regulamentação essa para a qual todos poderão intervir no que toca à sua definição.
Quando se fala em repressão das liberdades, é preciso saber qual o "espírito da lei". E aí o que não falta é ambiguidade...
Por outro lado, uma questão interessante é a de saber até que ponto as sociedades actuais são, de facto, sociedades democráticas, como se auto-intitulam. Talvez a democracia esteja em fase de metamorfose (positiva?) ou talvez ainda se encontre num estado semi-híbrido, onde já não é o que começou por ser e ainda não é o que quer ser. Mas qualquer coisa de intermédio, como diria o poeta!

Segundo dizem, a esperança é a última coisa a morrer e, de facto, eu ainda tenho esperança e ainda acredito no progresso, mesmo que esteja tudo muito aquém dos mais nobres objectivos. A sociedade democrática é ainda a sociedade da esperança onde podem germinar e crescer os mais elevados ideais. Depende de todos nós colaborar para a sua concretização, um pouco mais cada dia que passa e onde se edifica o futuro. Depende da nossa vontade.

É por isso que assinalo uma excelente leitura, não só interessante mas urgente, que é de ler e mesmo de reler. Não a única a propósito, certamente! Mas uma das que não deveríamos deixar escapar:

"O Mundo na Era da Globalização" de Anthony Giddens - conjunto de textos que já tem alguns anos e que, no entanto, permanece de extrema actualidade.
Neste pequeno conjunto de textos, não só nos alerta para uma série de aspectos interessantes acerca da democracia actual como chama a atenção para muitas tarefas que temos pela frente se queremos uma vida melhor. E, sobretudo, a minha simpatia por este senhor resulta da sua visão positiva do futuro, apresentando princípios orientadores concretos que nos surgem como "luz ao fundo do túnel". Porque, mais uma vez, depende de nós...

Uma pequena amostra do livro:

"Agora, há um democrata em cada pessoa, mas sabemos que nem sempre foi assim. No século XIX, as ideias democráticas foram ferozmente combatidas pelas elites dominantes e pelos grupos dirigentes, que muitas vezes se referiam a elas com desdém (...). O direito de voto era privilégio de uma minoria da população. (...)
(...) Antes da I Grande Guerra só havia quatro países em que as mulheres tinham direito de voto: Finlândia, Noruega, Austrália e Nova Zelândia. Na Suiça, as mulheres só conseguiram votar a partir de 1974."

" A divulgação de tantos escândalos de corrupção nos meios políticos durante os anos mais recentes não aconteceu por acaso. (...) Duvido que a corrupção nos países democráticos seja maior do que antigamente. O que se passa é que, numa sociedade aberta à informação, a corrupção é mais visível; a fronteira entre o que é considerado corrupção e o que não o é também se alterou."

" A democratização da democracia depende também do fomento de uma profunda cultura cívica. (...) A construção da democracia das emoções é um dos aspectos da cultura cívica progressiva. A sociedade civil é o fórum onde as atitudes democráticas, incluindo a tolerância, têm de ser cultivadas. A componente civil pode ser estimulada pelos governos para, por seu turno, se tornar a base em que eles se apoiam."

" Não podemos deixar os meios de comunicação social fora da equação. Os media, especialmente a televisão, têm uma relação equívoca com a democracia. Por um lado, como já acentuei, a emergência da sociedade global da informação é uma poderosa força de democratização. Por outro, a televisão e os outros media, graças à vulgarização constante e à personalização das questões políticas, tendem a destruir o próprio espaço público de debate que abrem. Além disso, o domínio crescente dos media pelas multinacionais gigantes significa que uns quantos magnatas, não sujeitos ao sufrágio do eleitorado, conseguem exercer um poder enorme."

" Em vez de vermos a democracia como uma planta frágil, que é fácil calcar com os pés, talvez devêssemos considerá-la uma planta robusta, capaz de crescer mesmo quando o solo é maninho. Se o meu argumento está correcto, a expansão da democracia está interligada com as mudanças estruturais da sociedade mundial. Nada se consegue sem luta. Mas a melhoria da democracia a todos os níveis é um combate que vale a pena travar, pois pode ser bem sucedido. Este nosso mundo, que parece desatinado, não precisa de menos governo, mas de mais governo - e isso é algo que só as instituições democráticas podem proporcionar."
Anthony Giddens, "Democracia" in O Mundo na Era da Globalização

(a fotografia no topo do post é de Anthony Giddens e a fotografia ao centro é da autoria de Robert Madden)

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