Sobre o autor: João Tordo nasceu em Lisboa em 1975. Formou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e estudou Jornalismo em Londres, tendo vivido nesta cidade entre 1999 e 2002. Também morou em Nova Iorque entre 2002 e 2004, onde estudou Creative Writing no City College of New York. Actualmente, vive em Lisboa e trabalha como jornalista. Foi vencedor do prémio Jovens Criadores em 2001. O seu primeiro romance, O Livro dos Homens Sem Luz, data de 2004.
Numa entrevista a João Tordo, realizada recentemente no programa "Última Edição" da Antena2, este jovem escritor despertou a minha atenção. Contribuiu para isso o conjunto de referências literárias por ele citadas: Edgar Allan Poe, Jorge Luís Borges, Kafka, Melville e... Paul Auster!
Ora, perante um novo escritor português que se revela admirador de Paul Auster (assim como de todos os outros referidos) e que escreve inspirado pelo estilo e pelo universo austeriano (um novo adjectivo que convém aprofundar), estando esta faceta aliada a uma formação em Filosofia... eu não poderia deixar passar esta leitura em branco. E tornou-se um prazer, mais do que a obrigação de "estar a par de...". Porque João Tordo escreve muito bem.
A sua inspiração literária é clara e imediatamente dada a conhecer pela epígrafe deste "Hotel Memória" :
"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." (Paul Auster)
Interessante... Como muitas das frases de Paul Auster. E uma ideia a desenvolver pelo escritor, ao longo do "Hotel Memória".
A história é bem construída, consegue manter o suspense até ao fim e desenrola-se com uma cadência narrativa segura, raras vezes marcada por passagens menos conseguidas. Alguma previsibilidade, num ou noutro momento. No geral, interessante a valer, conseguindo surpreender. E muito!
Ao longo da minha leitura, não pude deixar de estar atenta a comparações com Paul Auster, em busca de similaridades. Elas estão lá. Mas o autor foi totalmente honesto quanto a isso. De facto, há vários elementos que evocam a primeira história da "Trilogia de Nova Iorque" de Paul Auster, A Cidade de Vidro, sendo, no"Hotel Memória", intencionalmente recuperados. O mesmo poderá dizer-se em relação às duas outras histórias da "Trilogia", Fantasmas e O Quarto Fechado. Mas estas nítidas alusões ao universo de Paul Auster fazem, para mim, todo o sentido. Apenas porque assinalam alguns dos aspectos mais interessantes da escrita deste mestre da literatura. Refiro-me, por exemplo, à procura de uma identidade por parte dos personagens, identidade essa que, por vezes, só pode encontrar-se através de uma qualquer busca empreendida ao estilo detectivesco. Esta busca, criada artificiosamente mas plenamente simbólica, na minha interpretação, de uma busca do sentido da existência, procurado de forma recorrente pelos personagens. Mas existem outros temas que poderiam ser assinalados, a propósito deste paralelismo. É o caso da situação-limite do esquecimento de si que culmina num torpor de vagabundagem. Em Auster e neste "Hotel Memória". Esta queda vertiginosa que procura escapar às memórias, em confronto com a inevitabilidade das mesmas. Os temas não ficam por aqui e seriam, certamente, interessantes tópicos para discussão num Clube de Leitura...
De acrescentar que João Tordo não fica atrás de Auster na construção da narrativa. O escritor domina com segurança o desenrolar de uma trama muito bem arquitectada e que nos leva a virar as páginas sem darmos conta. E isto passa-se até ao fim, literalmente. Tal como Auster, recorre à técnica "histórias dentro da história". O que é do meu particular agrado.
Mas não só de Paul Auster, João Tordo se reclama. São muitos os ecos de Edgar Allan Poe neste romance, por exemplo. Numa fuga clara a atmosferas realistas, o escritor consegue com eficácia recriar ambientes carregados de tensão, onde a comunicação hipotética entre dois mundos distintos, estranhamente, acontece.
No entanto, foi com o maior interesse que procurei, igualmente, descobrir a voz própria do autor João Tordo. Se fosse apenas um Paul Auster de Portugal, já teria tremendo valor e interesse, para mim. Mas acontece que este escritor é mais do que isso. Escreve bem e tem um cunho pessoal a desenvolver. Algo que certamente virá a provar no futuro... E ao qual estarei atenta.
Desde já, incluo João Tordo na minha futura lista de leituras. Procurarei ler o seu primeiro romance que me escapou. É sempre revigorante descobrir que há novos caminhos a percorrer nas letras portuguesas, pela mão de novos talentos. Como é o caso deste.
A história: «Em Nova Iorque, um estudante apaixona-se por uma rapariga enigmática com quem vive uma intensa relação. Mas a morte desta, inesperada e violenta, enche o protagonista de culpa e remorso, lançando-o numa espiral descendente até o transformar num vagabundo, sem dinheiro e sem posses.
Numa entrevista a João Tordo, realizada recentemente no programa "Última Edição" da Antena2, este jovem escritor despertou a minha atenção. Contribuiu para isso o conjunto de referências literárias por ele citadas: Edgar Allan Poe, Jorge Luís Borges, Kafka, Melville e... Paul Auster!
Ora, perante um novo escritor português que se revela admirador de Paul Auster (assim como de todos os outros referidos) e que escreve inspirado pelo estilo e pelo universo austeriano (um novo adjectivo que convém aprofundar), estando esta faceta aliada a uma formação em Filosofia... eu não poderia deixar passar esta leitura em branco. E tornou-se um prazer, mais do que a obrigação de "estar a par de...". Porque João Tordo escreve muito bem.
A sua inspiração literária é clara e imediatamente dada a conhecer pela epígrafe deste "Hotel Memória" :
"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." (Paul Auster)
Interessante... Como muitas das frases de Paul Auster. E uma ideia a desenvolver pelo escritor, ao longo do "Hotel Memória".
A história é bem construída, consegue manter o suspense até ao fim e desenrola-se com uma cadência narrativa segura, raras vezes marcada por passagens menos conseguidas. Alguma previsibilidade, num ou noutro momento. No geral, interessante a valer, conseguindo surpreender. E muito!
Ao longo da minha leitura, não pude deixar de estar atenta a comparações com Paul Auster, em busca de similaridades. Elas estão lá. Mas o autor foi totalmente honesto quanto a isso. De facto, há vários elementos que evocam a primeira história da "Trilogia de Nova Iorque" de Paul Auster, A Cidade de Vidro, sendo, no"Hotel Memória", intencionalmente recuperados. O mesmo poderá dizer-se em relação às duas outras histórias da "Trilogia", Fantasmas e O Quarto Fechado. Mas estas nítidas alusões ao universo de Paul Auster fazem, para mim, todo o sentido. Apenas porque assinalam alguns dos aspectos mais interessantes da escrita deste mestre da literatura. Refiro-me, por exemplo, à procura de uma identidade por parte dos personagens, identidade essa que, por vezes, só pode encontrar-se através de uma qualquer busca empreendida ao estilo detectivesco. Esta busca, criada artificiosamente mas plenamente simbólica, na minha interpretação, de uma busca do sentido da existência, procurado de forma recorrente pelos personagens. Mas existem outros temas que poderiam ser assinalados, a propósito deste paralelismo. É o caso da situação-limite do esquecimento de si que culmina num torpor de vagabundagem. Em Auster e neste "Hotel Memória". Esta queda vertiginosa que procura escapar às memórias, em confronto com a inevitabilidade das mesmas. Os temas não ficam por aqui e seriam, certamente, interessantes tópicos para discussão num Clube de Leitura...
De acrescentar que João Tordo não fica atrás de Auster na construção da narrativa. O escritor domina com segurança o desenrolar de uma trama muito bem arquitectada e que nos leva a virar as páginas sem darmos conta. E isto passa-se até ao fim, literalmente. Tal como Auster, recorre à técnica "histórias dentro da história". O que é do meu particular agrado.
Mas não só de Paul Auster, João Tordo se reclama. São muitos os ecos de Edgar Allan Poe neste romance, por exemplo. Numa fuga clara a atmosferas realistas, o escritor consegue com eficácia recriar ambientes carregados de tensão, onde a comunicação hipotética entre dois mundos distintos, estranhamente, acontece.
No entanto, foi com o maior interesse que procurei, igualmente, descobrir a voz própria do autor João Tordo. Se fosse apenas um Paul Auster de Portugal, já teria tremendo valor e interesse, para mim. Mas acontece que este escritor é mais do que isso. Escreve bem e tem um cunho pessoal a desenvolver. Algo que certamente virá a provar no futuro... E ao qual estarei atenta.
Desde já, incluo João Tordo na minha futura lista de leituras. Procurarei ler o seu primeiro romance que me escapou. É sempre revigorante descobrir que há novos caminhos a percorrer nas letras portuguesas, pela mão de novos talentos. Como é o caso deste.
A história: «Em Nova Iorque, um estudante apaixona-se por uma rapariga enigmática com quem vive uma intensa relação. Mas a morte desta, inesperada e violenta, enche o protagonista de culpa e remorso, lançando-o numa espiral descendente até o transformar num vagabundo, sem dinheiro e sem posses.
Prisioneiro do Memory Hotel, um pardieiro na Baixa de Manhattan que parece destinado a albergar criaturas perdidas como ele próprio, é contratado por Samuel, um milionário excêntrico, para procurar um fadista português emigrado para os Estados Unidos quarenta anos antes.»
(Assim se lê o resumo da história na contracapa do livro)
(Editora: Quidnovi Literatura Portuguesa)
Excertos: " A verdade era que, se eu tinha opiniões, elas já não importavam. Decidira que o meu destino era sobreviver a todo o custo, e essa decisão retirara-me o poder de escolher, de intervir, de moldar a minha vida segundo as minhas crenças. A cada dia que passava, enfiado no meu pequeno buraco dentro da cozinha, sentia que o meu espírito se ia esvaziando das coisas essenciais que o formavam, se ia desnudando de tudo aquilo que tinha aprendido, de todas as certezas que havia formado sobre o mundo. Já não dependia do álcool, mas não tomara essa decisão; simplesmente acontecera, ao sujeitar-me ao esforço diário de oito horas debaixo do calor infernal de uma cozinha, na posição mais baixa da hierarquia. Quando chegava ao final de um turno, o meu corpo era borracha queimada, pronto a moldar-se a qualquer superfície e ali ficar, entregue a um cansaço tão grande que nenhum lugar, propósito ou pessoa me poderia fazer querer mover. E, em última análise, era isso que eu queria da vida depois da morte de Kim: não a viver, não estar em lado nenhum, não desejar nada."
(...)
"É aqui que tem início a parte mais obscura desta história, aquela sobre a qual mais dúvidas se levantam no meu espírito. É também aqui que começo uma segunda existência, depois de cair e me levantar, tentando fazer sentido de uma vida que, em breve, deixaria de possuir os contornos ilusórios da realidade. Mas isso aconteceu depois, algum tempo depois, quando deixei de saber distinguir os homens das sombras - quando tudo se transformou numa névoa, numa ilusão de passado, e cheguei a concluir, com a acutilância de um detective, que nunca poderemos saber o que se passou num tempo anterior a nós; nem, muitas vezes, saber a verdade das coisas que acontecem diante dos nossos olhos."
(Assim se lê o resumo da história na contracapa do livro)
(Editora: Quidnovi Literatura Portuguesa)
Excertos: " A verdade era que, se eu tinha opiniões, elas já não importavam. Decidira que o meu destino era sobreviver a todo o custo, e essa decisão retirara-me o poder de escolher, de intervir, de moldar a minha vida segundo as minhas crenças. A cada dia que passava, enfiado no meu pequeno buraco dentro da cozinha, sentia que o meu espírito se ia esvaziando das coisas essenciais que o formavam, se ia desnudando de tudo aquilo que tinha aprendido, de todas as certezas que havia formado sobre o mundo. Já não dependia do álcool, mas não tomara essa decisão; simplesmente acontecera, ao sujeitar-me ao esforço diário de oito horas debaixo do calor infernal de uma cozinha, na posição mais baixa da hierarquia. Quando chegava ao final de um turno, o meu corpo era borracha queimada, pronto a moldar-se a qualquer superfície e ali ficar, entregue a um cansaço tão grande que nenhum lugar, propósito ou pessoa me poderia fazer querer mover. E, em última análise, era isso que eu queria da vida depois da morte de Kim: não a viver, não estar em lado nenhum, não desejar nada."
(...)
"É aqui que tem início a parte mais obscura desta história, aquela sobre a qual mais dúvidas se levantam no meu espírito. É também aqui que começo uma segunda existência, depois de cair e me levantar, tentando fazer sentido de uma vida que, em breve, deixaria de possuir os contornos ilusórios da realidade. Mas isso aconteceu depois, algum tempo depois, quando deixei de saber distinguir os homens das sombras - quando tudo se transformou numa névoa, numa ilusão de passado, e cheguei a concluir, com a acutilância de um detective, que nunca poderemos saber o que se passou num tempo anterior a nós; nem, muitas vezes, saber a verdade das coisas que acontecem diante dos nossos olhos."
João Tordo, in "Hotel Memória"