Comprei este livrinho há dias e gostei imenso da leitura. Atraiu-me a ideia de acompanhar os últimos dez anos da vida de Ravel. Sempre tive uma grande curiosidade acerca da vida dos compositores, Mozart, Schubert, Debussy, Satie... Mas sobre Maurice Ravel (1875-1937) nunca tinha pesquisado muito. Surgiu, agora, a oportunidade de ficar a saber mais acerca dele pela leitura deste romance de Jean Echenoz. Apesar de não se tratar, de facto, de uma biografia, mas sim de uma ficção à volta de um personagem real. Não deixa de ser enriquecedor, até porque do escritor pouco sabia e, agora, tenho-o como referência a não esquecer. Gostei mesmo do livro!
A capa que aqui apresento é da edição francesa. Entre nós, o romance foi publicado pela Sextante Editora (anteriormente, Sudoeste Editora). Num pequeno livro simplesmente apetecível... E que me apeteceu. Ficando além da minha expectativa.
Jean Echenoz fala-nos de Ravel de uma forma elegante, atraente e simultaneamente objectiva e rigorosa. Pelo fio da sua narrativa, somos conduzidos até factos e questões extremamente interessantes. Apesar do anti-psicologismo com que Echenoz gosta de caracterizar as suas personagens, conseguimos compreender um pouco do homem que foi compositor. Admiramos, de alguma forma, o compositor que habitou o homem.
Neste livro, uma das questões que mais me tocou, entre outras, foi aquela a que se refere o pequeno excerto que aqui transcrevo:
A capa que aqui apresento é da edição francesa. Entre nós, o romance foi publicado pela Sextante Editora (anteriormente, Sudoeste Editora). Num pequeno livro simplesmente apetecível... E que me apeteceu. Ficando além da minha expectativa.
Jean Echenoz fala-nos de Ravel de uma forma elegante, atraente e simultaneamente objectiva e rigorosa. Pelo fio da sua narrativa, somos conduzidos até factos e questões extremamente interessantes. Apesar do anti-psicologismo com que Echenoz gosta de caracterizar as suas personagens, conseguimos compreender um pouco do homem que foi compositor. Admiramos, de alguma forma, o compositor que habitou o homem.
Neste livro, uma das questões que mais me tocou, entre outras, foi aquela a que se refere o pequeno excerto que aqui transcrevo:
"(...) Em Viena, é convidado com Marguerite para um grande jantar seguido de uma recepção em sua honra oferecida em casa de Paul Wittgenstein durante a qual, este, que encomendou e a quem foi dedicada a obra, vai tocar o concerto com a sua própria mão. (...).
Desde o início da interpretação, e enquanto vai seguindo o concerto pela partitura, que Marguerite, sentada desta vez ao lado do autor, pode ler no rosto cada vez mais macilento de Ravel as consequências lastimáveis das iniciativas do maneta. É que Wittgenstein não se limitou a simplificar a obra para adaptá-la aos seus recursos, pelo contrário, aproveitou a ocasião para mostrar até que ponto, por diminuído que esteja, não deixa de ser um bom intérprete. Em vez de respeitar a obra e servi-la o melhor que pode, ei-lo a fazer brilharetes, acrescentando arpejos, compassos aqui e ali, desenhando trinados, meneios rítmicos que o texto não lhe pedia, apogiaturas e grupetos, passando dos baixos aos agudos, percorrendo o teclado por inteiro, para mostrar como é ágil, como é vivo, como é uma criatura condescendente e se está nas tintas para todos os presentes. O rosto de Ravel fica branco.
No final do concerto, (...): Ravel aproxima-se devagar de Wittgenstein, e nunca ninguém o viu assim desde o caso com Toscanini. Isto não pode ser, disse ele, friamente. É que não pode ser de maneira nenhuma. Não pode ser, está a ouvir? Meu caro, diz Wittgenstein a tentar defender-se, eu sou um velho pianista, e tal como o senhor escreveu é que não pode ser tocado, não soa bem. E eu sou um velho orquestrador, responde Ravel cada vez mais gelado, e digo-lhe que pode. (...)
(...)
Mas Ravel não se esquece daquilo que para ele é o mais importante: desde o seu regresso a França que se opõe totalmente à vinda de Wittgenstein, que estava interessado em ir dar um concerto em Paris. Escreve-lhe umas simples palavras nas quais dá a entender que a sua interpretação não passou de uma má imitação e convida-o a tocar a sua obra rigorosamente tal como foi composta. Quando Wittgenstein, vexado, lhe responde que os intérpretes não devem ser escravos, Ravel responde-lhe por sua vez em quatro palavras: Os intérpretes são escravos."
Desde o início da interpretação, e enquanto vai seguindo o concerto pela partitura, que Marguerite, sentada desta vez ao lado do autor, pode ler no rosto cada vez mais macilento de Ravel as consequências lastimáveis das iniciativas do maneta. É que Wittgenstein não se limitou a simplificar a obra para adaptá-la aos seus recursos, pelo contrário, aproveitou a ocasião para mostrar até que ponto, por diminuído que esteja, não deixa de ser um bom intérprete. Em vez de respeitar a obra e servi-la o melhor que pode, ei-lo a fazer brilharetes, acrescentando arpejos, compassos aqui e ali, desenhando trinados, meneios rítmicos que o texto não lhe pedia, apogiaturas e grupetos, passando dos baixos aos agudos, percorrendo o teclado por inteiro, para mostrar como é ágil, como é vivo, como é uma criatura condescendente e se está nas tintas para todos os presentes. O rosto de Ravel fica branco.
No final do concerto, (...): Ravel aproxima-se devagar de Wittgenstein, e nunca ninguém o viu assim desde o caso com Toscanini. Isto não pode ser, disse ele, friamente. É que não pode ser de maneira nenhuma. Não pode ser, está a ouvir? Meu caro, diz Wittgenstein a tentar defender-se, eu sou um velho pianista, e tal como o senhor escreveu é que não pode ser tocado, não soa bem. E eu sou um velho orquestrador, responde Ravel cada vez mais gelado, e digo-lhe que pode. (...)
(...)
Mas Ravel não se esquece daquilo que para ele é o mais importante: desde o seu regresso a França que se opõe totalmente à vinda de Wittgenstein, que estava interessado em ir dar um concerto em Paris. Escreve-lhe umas simples palavras nas quais dá a entender que a sua interpretação não passou de uma má imitação e convida-o a tocar a sua obra rigorosamente tal como foi composta. Quando Wittgenstein, vexado, lhe responde que os intérpretes não devem ser escravos, Ravel responde-lhe por sua vez em quatro palavras: Os intérpretes são escravos."
in Ravel, Jean Echenoz
Nota: O sublinhado é meu.
Ora bem. Esta questão da relação entre compositor e intérprete, a dificuldade de atingir um acordo quanto à forma correcta de execução, é uma questão perene. No domínio da música e não só. Coloca o sempre difícil problema da interpretação.
Sempre achei fascinante a ideia transmitida por muitos pianistas e outro tipo de intérpretes: a de que, em determinada altura, terão "entrado" na mente e na sensibilidade do compositor cujas obras executam. Na verdade, parece-me extraordinário, conseguir sentir, pensar, como sentiu/sente, pensou/pensa um outro. Sobretudo se o meio de comunicação entre estes dois seres é a linguagem musical e não a verbal. O que é particularmente relevante na interpretação das obras dos compositores do passado. Como se, desta forma única, uma ponte que se estende para além do tempo e da morte fosse construída. Construída porque julgo ter muito de trabalho persistente, mais do que espírito de uma certa "mística".
Será, então, o intérprete um escravo? Ou um intérprete imprime sempre algo de seu, o seu próprio "eu" fará sempre sentir-se na sua execução? O seu cunho pessoal? Ou será tanto mais fiel à obra e ao seu autor, se conseguir despojar-se de si e investir-se do "espírito" de um outro? É para pensar...
De qualquer modo, se interpretar é tornar-se escravo, é de observar e escutar um escravo absolutamente magnífico que penso poderá elucidar todas as respostas possíveis. Quando todas as palavras parecem vãs perante esta expressividade:
(YouTube: Bernstein Plays Ravel's Concerto in G )
Mais acerca de Jean Echenoz aqui
Sempre achei fascinante a ideia transmitida por muitos pianistas e outro tipo de intérpretes: a de que, em determinada altura, terão "entrado" na mente e na sensibilidade do compositor cujas obras executam. Na verdade, parece-me extraordinário, conseguir sentir, pensar, como sentiu/sente, pensou/pensa um outro. Sobretudo se o meio de comunicação entre estes dois seres é a linguagem musical e não a verbal. O que é particularmente relevante na interpretação das obras dos compositores do passado. Como se, desta forma única, uma ponte que se estende para além do tempo e da morte fosse construída. Construída porque julgo ter muito de trabalho persistente, mais do que espírito de uma certa "mística".
Será, então, o intérprete um escravo? Ou um intérprete imprime sempre algo de seu, o seu próprio "eu" fará sempre sentir-se na sua execução? O seu cunho pessoal? Ou será tanto mais fiel à obra e ao seu autor, se conseguir despojar-se de si e investir-se do "espírito" de um outro? É para pensar...
De qualquer modo, se interpretar é tornar-se escravo, é de observar e escutar um escravo absolutamente magnífico que penso poderá elucidar todas as respostas possíveis. Quando todas as palavras parecem vãs perante esta expressividade:
(YouTube: Bernstein Plays Ravel's Concerto in G )
Mais acerca de Jean Echenoz aqui