quarta-feira, 4 de julho de 2007

Na areia à beira-mar


O repúdio pelo vazio parece ter lugar logo na infância. Sempre achei delicioso observar as brincadeiras infantis, entre outras razões, por nelas encontrar o traço das atitudes do adulto em embrião. O esboço precioso da orientação futura... A persistência pode ser um traço que já aí se encontra, o espírito mais ou menos construtivo, mais ou menos teimoso ou caprichoso. As construções na areia, e a reacção perante a sua volátil durabilidade, tudo converge para a previsão da personalidade em construção.
A natureza humana vive na infância em estado puro e é aí que se mostra, mais claramente, o que nela é essencial.
Acho que a Susanna Tamaro captou magistralmente essa precisa imagem, a da infância da humanidade na sua essência mais profunda, com as palavras que a seguir transcrevo:

" Não sei se, em criança, foste alguma vez para a beira-mar fazer buracos na areia. Começas a cavar com todo o entusiasmo, tentas cavar ainda mais fundo, mas, por mais areia que tires, o buraco mantém-se sempre na mesma, devido à inflitração da água. Cavas, cavas e, como Sísifo, estás sempre no mesmo sítio. A natureza não gosta do vazio, mal o vazio se cria, volta a enchê-lo. Enche-o com areia, folhas, microrganismos, água, ou entulho, porque o vazio não faz parte dos seus projectos.

Também o homem, nos últimos três séculos de história, começou com grande empenho a esvaziar o céu da presença do Criador e, como a criança da praia, teve, durante alguns instantes, a certeza de que conseguira. O céu está vazio, o homem é finalmente livre. Livre do preconceito, livre de terrores ancestrais e da escravidão. Será mesmo assim? Ou será que o céu vazio se encheu imediatamente de outras coisas? De venusianos, marcianos, árvores-guia e animais-guia, minerais e palavras mágicas?"
Susanna Tamaro, O Fogo e o Vento

( Imagem: Pintura de Mary Cassatt )