domingo, 20 de janeiro de 2008

Dino Buzzati

Este é um autor cuja leitura não pode deixar de ser absolutamente recomendável. Li recentemente dele uma colectânea de contos publicada pela Cavalo de Ferro que se apresenta com o título "Pânico no Scala". De facto, este é o primeiro conto magnífico de todos os que no livro se oferecem a ler. A minha preferência vai, no entanto, para muitos dos outros.


Dino Buzzati (1906-1972)

"O Deserto dos Tártaros"
é o romance considerado a sua obra-prima, do qual vi há alguns anos a adaptação ao cinema de Valerio Zurlini. Desde logo, fiquei fascinada com o ambiente recriado, uma atmosfera de imobilidade onde a acção decorre quase só pelo poder mental de projectar os acontecimentos desejados e ambicionados. Essa mesma temática está igualmente presente em muitos dos seus contos, a avaliar por estes que li. Ou seja, Buzzati descreve o ser humano como aquele cuja energia criadora pode ser devastadora. Com a capacidade única de introduzir na realidade dimensões fantásticas e surreais, as quais conduzem a sua existência, na maior parte das vezes, a um irredutível absurdo. Pode não acontecer quase nada efectiva e realmente, mas a partir da intervenção criadora do humano, acontecem inumeráveis coisas... outras... É essa também a ideia, em grande parte, de "Pânico no Scala".



Dino Buzzati foi um grande escritor (de referir também a sua actividade como jornalista e o seu trabalho na pintura) mas, acima de tudo, foi um brilhante ser humano. Deixou-nos textos indiscutivelmente especiais e inesquecíveis. Escritos, em grande medida, com a elegância e o rigor formal de um classicista. Por outro lado, o conteúdo é fantástico e maravilhoso, excedendo todos os limites da forma na sua transbordante riqueza imaginativa, a par de uma profunda vertente existencial. Com a maior simplicidade narrativa, conduz-nos à reflexão pelos temas mais banais e, simultaneamente, mais radicais. É assim que nos transporta à matéria inexplicável de que se faz o humano.

Fica-nos o seu precioso e imperdível registo literário, o de uma dimensão da arte capaz de transfigurar a realidade até ao melhor e mais alto nível.

Uma pequena amostra:



"(...) Maio ia já bem adiantado, é verdade, altura em que a temporada do Scala, no entender dos mais intransigentes, começa a declinar, ocasião em que é de boa norma oferecer ao público, composto em grande parte por turistas, espectáculos de êxito seguro que não são duma exigência excessiva, escolhidos no repertório clássico mais tradicional; (...).

Mas naquela noite havia espectáculo de gala. (...) Eram nove menos dez, o teatro já estava cheio. Cottes olhou à volta, extasiado como um rapazinho. Por mais que os anos passassem, a primeira sensação, sempre que entrava naquela sala, mantinha-se pura e viva, como perante os grandes espectáculos da natureza. Muitos outros, com os quais trocava fugazes sinais de saudação, sentiam o mesmo, sabia-o. Disso mesmo nascia uma espécie de fraternidade, uma espécie de inócua maçonaria que aos estranhos, devia parecer porventura um pouco ridícula. (...)"
Dino Buzzati in "Pânico no Scala"



Pintura de C.D. Friedrich
"Giuseppe Gaspari, comerciante de cereais, de quarenta e quatro anos, chegou num dia de Verão à aldeia de montanha onde a mulher e os filhos passavam férias. Mal chegou, a seguir ao almoço, quase todos os outros tendo ido dormir, saiu sozinho para dar um passeio. Enveredando por um caminho íngreme que subia para a montanha, olhava à sua volta para observar a paisagem. Mas, apesar do sol, a sensação que tinha era de desilusão. Esperara que o lugar fosse um vale romântico com bosques de pinheiros e larícios, fechado por grandes falésias. Em vez disso, era um vale de contraforte alpino, fechado por cumes atarracados, como panettone, de aspecto desolado e baço. Um poiso de caçadores, pensou Gaspari, lamentando já não poder viver, nem que fosse por alguns dias, num daqueles vales, imagem de felicidade humana, dominados por penhascos fantásticos, onde inocentes hotéis em forma de castelo se erguem no limiar de florestas antigas, carregadas de lendas. E com amargura considerava que toda a sua vida fora assim: nada, no fundo, lhe faltara, mas cada coisa fora sempre inferior ao desejo de uma vida mediana que extinguia a necessidade, mas que nunca lhe dera uma alegria plena. (...)

Sim, ele, quarentão, tinha ido brincar com crianças, julgando-se criança, só que nas crianças reside uma espécie de angélica leveza, enquanto ele acreditara que era tudo a sério, com uma fé pesada e furiosa, incubada, quem sabe, por tantos anos sem dela ter consciência. Uma fé tão forte que tudo se tornara verdade - a ravina, os selvagens, o sangue. Entrara num mundo que já não era o seu, o das fábulas, passara os confins que não se podem impunemente tentar numa certa estação da vida. Dissera a uma porta secreta abre-te, julgando quase brincar, mas a porta abrira-se verdadeiramente. Dissera selvagens e assim acontecera. Seta, por brincadeira, e verdadeira seta o matava. (...)"
Dino Buzzati in "O Burguês Enfeitiçado"


Mais informação sobre o autor e a sua obra aqui e aqui

(As imagens foram obtidas em pesquisa do Google)