Ainda a propósito da minha mais recente leitura (os contos de Dino Buzzati), deixou em mim profunda impressão o último destes textos que li, intitulado
"O Sótão".
Nesta história singela, um homem vê-se confrontado com uma simbólica tentação que o leva à destruição, nomeadamente, ao fracasso enquanto artista pela realização medíocre da sua obra. A tentação que o atormenta e que, na verdade, poderia ser qualquer uma, desde que ligada ao prazer mais intenso e desregrado, reveste aqui a forma de
uma pilha de maçãs, as quais, surgindo estranhamente numa arrecadação semi-abandonada, possuem cores e sabores (sabores, em especial) capazes de conduzir um homem à loucura, ao abandono de si e de toda a actividade produtiva. Parecem igualmente ter o efeito de o levar a optar por uma espécie de pacto com o diabo, em detrimento da escolha do bem identificado com o carácter sagrado da dignidade humana. A sua luta revela-se, logo à partida, algo artificial, uma vez que precisa de se comprometer com Deus, sob o jugo do medo que o domina, para conseguir realizar algo digno de nota para a sua vida e para si mesmo enquanto ser humano. Evidentemente, a história traz-nos toda uma série de ecos relacionados com o episódio bíblico do Jardim do Éden e respectivo
"fruto proibido". Como se a
"maçã de Adão e Eva" continuasse a atormentar-nos...
É realmente algo prodigioso, do ponto de vista literário, conseguir condensar tantas e tão complexas questões acerca da natureza humana, através de imagens aparentemente tão simples e mediante um simbolismo tão encantador quanto mais nos parece radicalmente ingénuo.
No entanto, este conto a que aludo é de um tremendo pessimismo, tão negro e assustador como a mais terrível história de violência assassina. Neste caso, a violência exerce-se a partir do sujeito para consigo mesmo, como se todo ele se desdobrasse, revelando nas suas profundezas um monstro humano, o qual tem como alvo desse intenso poder destrutivo, a sua própria pessoa. Malévolo perturbador na essência. Fatal na existência.
Por outro lado, esta história de um homem completamente dividido no universo das contradições revela uma intensa vivência religiosa. Com todas as "cargas" que essa dimensão de sentimento religioso acarreta, entre elas, a soberana culpa. Neste caso, fundamentada, talvez...
Problemático, profundo, encantador e filosófico-existencial, é este o universo de mais um grande escritor que ficará na lista dos meus admiráveis.
Mas a questão deste pessimismo que parece comum a tantos grandes pensadores, escritores e intelectuais, artistas ou boémios experimentadores da vida, visão de tantos e tantos que parecem convergir quanto às suas conclusões acerca do mundo e dos seres humanos... A questão é que todos, no seu conjunto, parecem formar uma impressionante amálgama de visões pessimistas da existência, sem hipótese de ser ignorada.
É sempre uma alternativa a escolher, a de permanecer no mundo com a postura própria de um
Candide de Voltaire, acreditando que está tudo bem, pois este é o melhor dos mundos possíveis. Mas parece difícil não querer saber mais sobre o mundo, ainda que à custa da descoberta de não ser este o melhor de todos os possíveis. A agravar essa desilusão pode juntar-se o problema de não se saber indicar que outro mundo (em concreto) seria uma possibilidade e, de facto, melhor.
E a pergunta que se impõe é: onde estão as reais visões optimistas ou, no mínimo, progressistas do mundo e dos seres humanos? Onde reconhecer um pendor optimista e de confiança no futuro, onde os projectos se formem com a vontade de que aconteçam, mas sem que nos pareçam tão utópicos ao ponto de constituirem meras quimeras, ou fantasias ingénuas sem possibilidade de se realizarem? É ainda possível ser-se optimista, mesmo sabendo que a matéria-prima do humano tem um lado tão obscuro quanto um outro que pode ser brilhante?
Compreendo o pessimismo e eu mesma também o vivo. Reconheço-lhe fundamentos. Mas suponho, com esperança, a existência de outras perspectivas. É que sem esse desafio no horizonte, a vida parece constituir um pântano que faz desaparecer ideias e com elas todo o futuro possível...
Evidentemente, há muitas espécies de pessimismo e são muito diversos os contextos onde ele se pode fazer sentir. No entanto, antes de qualquer especificidade, ele parece constituir um modo de existir que lenta e gradualmente impregna as nossas redes neuronais. Depois... reflecte-se no domínio mais propício num dado momento. E a outra pergunta é: o mundo e a humanidade são entidades essencialmente negativas, ou o nosso esquema mental dominante tem poder para os tornar tal e qual assim? Se tem, também pode criar o inverso e trazê-lo efectivamente à existência.
Aqui fica uma posição que me pareceu interessante, manifestada por alguém de quem vale a pena saber mais...
Jacques Attali! Sobretudo porque é uma visão optimista!
"(... a dualidade da história: ao mesmo tempo sentido e movimento, imobilidade e repetitividade. No fundo, a única coisa imóvel na história é o modo como as formas, naturais e sociais, nascem e desaparecem. Aquilo a que chamamos habitualmente a crise é, pois, o estado permanente de toda a realidade: uma forma é sempre uma tensão para um ideal, em realização ou em destruição; e a "não crise" é um momento extraordinariamente fugaz, uma utopia volátil entre dois períodos de crise, de reescritura do texto da história do mundo."
"A história é antes do mais a procura insaciável da liberdade contra a barbárie. Utiliza sempre a desordem, o mal, como sinal anunciador da urgência da ultrapassagem de si. Ainda aí, como em todas as coisas, o mal pode ser fonte de bem."
Jacques Attali in
Entrevistas de Guitta Pessis-Pasternak (jornalista de ciência)